TSE não tem como fazer cumprir cotas raciais

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Foto: Jorge William

Na primeira eleição em que os partidos deverão respeitar os repasses proporcionais de verba para candidaturas negras, especialistas temem o crescimento de fraudes em autodeclaração de raça para atingir as metas para o pleito de outubro. Segundo eles, a falta de um mecanismo fiscalizatório dentro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) pode causar irregularidades na declaração no primeiro ano em que há a obrigatoriedade de repasse de recursos a postulantes negros.

Em 2020, o colegiado do TSE definiu que os repasses do Fundão Eleitoral a negros e mulheres passaria a valer em dobro na hora de calcular a distribuição dos recursos e que a separação de tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV seria proporcional ao número de candidaturas negras por partidos. Depois de uma série de reclamações levadas à Corte por legendas, no entanto, ficou determinado que a regra passaria a valer a partir das eleições deste ano.

Neste ano, pelo menos 1.387 candidatos alteraram a declaração de raça — do total, 547 deixaram de se declarar brancos e passaram registrar a candidatura como pardos. A autodeclaração de raça é obrigatória em todos os pleitos desde as eleições gerais de 2014, e pode ser alterada a cada eleição. Embora a mudança na autodeclaração esteja associada a uma transformação na forma como a população brasileira se identifica, especialistas em questões raciais também avaliam que há chance de haver uma conotação maliciosa.

Eles argumentam que a possibilidade de aumento de fraudes na autodeclaração em candidaturas negras— identificados como pretos e pardos, segundo critérios de classificação do IBGE — pode ter relação com a ausência de ferramentas fiscalizatórias, como uma comissão de heteroidentificação no âmbito do TSE ou dos TREs. O formato já vem sendo adotado nas principais universidades públicas do país como forma de coibir eventuais fraudes em cotas raciais.

Nas instituições de ensino, a comissão é composta, geralmente, por cinco especialistas em questões raciais que atuem na unidade. Eles serão responsáveis por avaliar características fenotípicas do candidato — textura do cabelo, formato dos lábios e do nariz e a cor da pele — para apurar se houve alguma irregularidade no preenchimento de autodeclaração. Depois do primeiro aferimento, o candidato vai passar por uma segunda avaliação em outro colegiado com cinco integrantes. Por fim, ele pode recorrer caso discorde do resultado.

Na avaliação de Maria Valéria Barbosa, professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Unesp e presidente da comissão de heteroidentificação da instituição, a proporcionalidade no repasse de verbas a candidaturas negras é um “exercício para a garantia de política pública” em uma sociedade racista. No entanto, ela não descarta a possibilidade de irregularidades:

— É, sobretudo, um exercício para a garantia da política pública porque existe um mecanismo de opressão na sociedade brasileira chamada racismo. Ter as cotas para os partidos políticos nas candidaturas faz com que a gente tenha um movimento muito parecido (com o que vemos nas universidades). As pessoas que nunca se entenderam como pardas veem na figura do pardo uma forma de se autodeclarar. Vão buscar na ascendência uma forma de referendar a autodeclaração — explica.

O coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares em Ações Afirmativas da Uerj (Gemaa) Luiz Augusto Campos, no entanto, pondera que o crescimento na mudança de autodeclaração de pardos não pode ser encarado apenas como uma “ação utilitária”. Ele explica que, em muitos casos, cabe aos secretários de cada partido enviar a declaração de raça dos candidatos e, por isso, podem surgir equívocos.

Apesar do processo eleitoral compreender um número extenso de candidaturas, Maria Valéria acredita que é factível que o TSE e os TREs implementem comissões de heteroidentificação aos moldes das que, hoje, existem nas universidades. Em um primeiro momento, ela vê que o processo de fiscalização, poderia ser facilitado através da análise de fotografias pelo grupo de especialistas.

— Em um primeiro momento, a comissão de heteroidentificação poderia fazer a análise das fotografias das pessoas, em uma atividade bastante ágil, para confirmar ou não confirmar a autodeclaração. Elas poderiam ser instaladas em TREs ou até o TSE poderia, em uma dimensão nacional, ter várias comissões para fazer uma ação coordenada nacionalmente. Aquelas que não fossem referendadas passariam por outros processos de verificação, inclusive entrevistas por vídeo, e só vão por entrevistas presenciais na terceira etapa. Não é algo difícil de implementar, e poderia trazer inclusive os especialistas das universidades — avalia a professora.

Campos, por outro lado, avalia que constituir comissões de heteroidentificação seria muito complexo a nível nacional durante as eleições, especialmente nos pleitos municipais, devido ao alto número de candidaturas — em 2020, por exemplo, foram 557 mil postulantes. No entanto, para mitigar eventuais fraudes, ele avalia que o formulário de declaração de raça poderia ser feito separadamente:

— A ausência de mecanismos de fiscalização abre margem para impropriedades para como essas regras funcionam, agora a gente não pode depositar todas as expectativas em comissões de heteroidentificação. Acho que têm soluções intermediárias que sequer cogitamos, como uma declaração separada para que o candidato realize a autodeclaração de raça.

O Globo