Extrema-direita se adapta a cada país
Foto: Sandra Codo / Divulgação Instituto de Estudos Avançados da USP
Diversos articulistas, assim como o candidato Ciro Gomes (PDT) em sua campanha, costumam atribuir o fenômeno eleitoral de Jair Bolsonaro (PL) a uma simples rejeição da população ao petismo ou ao “lulopetismo”. O fator pode até contribuir com a densidade eleitoral do presidente, mas está longe de explicar a onda da extrema-direita que se observa em todo o mundo, como afirma o professor de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo (USP) Cicero Araujo.
Esse fenômeno aconteceu nas eleições legislativas italianas do último dia 25 de setembro, o que deve confirmar Giorgia Meloni, do partido da extrema-direita Irmãos da Itália, como primeira-ministra do país. Na França, em abril deste ano, a candidata de extrema-direita Marine Le Pen foi ao segundo turno e ameaçou a reeleição do candidato de centro-direita Emmanuel Macron.
Em 2021, nas eleições portuguesas, o candidato André Ventura (Chega), representante do movimento, chegou ao fim das eleições presidenciais em terceiro colocado, a apenas 45 mil votos da candidata Ana Gomes, do tradicional PS (Partido Socialista), de orientação social-democrata, legenda do atual primeiro-ministro, Antônio Costa.
Nos Estados Unidos, a eleição em 2016, e a quase reeleição de Donald Trump, mostrou a força da extrema-direita em uma das maiores democracias do mundo, e o conservador partido Republicano, absorvido pelos seguidores do empresário, perdeu, em parte, a moderação usual.
Mas Araujo alerta que, apesar de um movimento global, a extrema-direita assume feições particulares em cada país. É comum a todos a construção de inimigos, mas eles mudam em cada contexto. Na Europa, a extrema-direita tem seu foco na luta contra a imigração e contra a pluralidade cultural, já na América Latina, composta de países multiculturais, o enfoque é mais reacionário, de retorno ao passado. “Enquanto a esquerda idealiza o futuro, os reacionários idealizam o passado”, avalia.
Enquanto isso, “a extrema-direita do Brasil tem muitas coisas diferentes juntas, inclusive o conservadorismo. Mas o que mais se acentuou foi o reacionarismo. É a revolta contra a modernidade em vários sentidos: a ciência, a vacina, o conhecimento racional, a diversidade, o pluralismo”, complementa.
A diferença entre o conservador e o reacionário fica clara, aponta o professor. Enquanto o primeiro admite a mudança e a evolução “natural” da sociedade, não negando nem a razão nem a ciência, o reacionário acredita que os males modernos são fruto dos avanços nos direitos daqueles que ele considera os “outros”, sejam eles os “nordestinos”, estrangeiros, ou qualquer grupo distinto do seu projeto de nação.
Com discurso simples, a extrema-direita conseguiu dar voz a uma forte insatisfação latente, em especial nas camadas populares e médias que ficaram de fora dos ganhos com a globalização. Para Araujo, “a extrema-direita soube representar a intensidade do que estava represado, e as suas lideranças não são de extratos sofisticados da sociedade, como na direita clássica, assim, esses movimentos vêm conseguindo tematizar uma crítica contra as elites”.
Não foi a extrema-esquerda que capitalizou com a crise depois do crash de 2008 e sim essa direita disruptiva. “O bolsonarismo, assim como o trumpismo, ou como a extrema-direita europeia, é uma reação aos acontecimentos dos últimos 30 anos. A globalização colocou em contato povos diferentes, em costumes, em práticas morais e em comportamentos. Isso gerou assombro, e, com a redução das perspectivas de uma classe média empobrecida, está criado o caldo”,aponta.
Nesse movimento, as forças da direita democrática moderada acabam mais fragilizadas, algo que vem acontecendo com PSDB, um tradicional antagonista político do PT. Na França, o UMP, dos ex-presidentes Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac, teve uma votação inexpressiva. Em Portugal, o tradicional PSD, legenda do atual presidente Marcelo Rebelo de Sousa, encolheu nas últimas eleições legislativas.
O surgimento de líderes populistas de direita, muito hábeis e com respostas simples para problemas complexos, vem associado a uma retomada do discurso religioso. No Brasil, a associação com os evangélicos — uma religião popular —, faz todo o sentido. “É uma igreja mais plebeia, e isso dá uma potência popular que a direita conservadora nunca teve”, pondera Araujo.
Tanto a extrema-esquerda revolucionária — que já existiu, mas hoje não representa nenhuma ameaça —, quanto a extrema-direita disruptiva, em crescimento no mundo, buscam destruir o outro, o inimigo. Um rival que muda nas diferentes conformações, mas, em comum, observa-se a negação dos avanços da democracia, da pluralidade e da diversidade social. Algo inadmissível aos conservadores.