Lula e Bolsonaro disputam voto em MG

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Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo

Um dos movimentos para se entender o xadrez político jogado em Minas Gerais a duas semanas das eleições se deu numa sala reservada em um centro de convenções de Belo Horizonte na tarde de sexta-feira. Prefeitos reunidos pela Associação Mineira de Municípios (AMM) fizeram fila para sair bem na foto com o presidente Jair Bolsonaro (PL), pela terceira vez na capital do estado desde o início do segundo turno. O evento, que reuniu, segundo a entidade, 687 dos 853 chefes locais mineiros, migrou do endereço planejado inicialmente para o quartel-general de Romeu Zema (Novo) na cidade. O governador reeleito foi apresentado como coordenador da campanha governista ao Planalto. Oficialmente apartidária, a confraternização, de acordo com lideranças políticas locais, incluiu o compromisso do candidato do PL de, se conquistar um novo mandato, criar uma secretaria especial para atender demandas de alcaides.

— Foi uma demonstração de força, tanto que a prefeita de Contagem, Marília Campos (PT), pediu uma reunião similar com a campanha de Lula — diz o cientista político Carlos Ranulfo, da UFMG. — A questão é saber se a investida irá além da fotografia. E se o uso da máquina do Palácio da Liberdade conseguirá algo muito difícil: transferir votos.

Em Minas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu no primeiro turno com 48% contra 43% de Bolsonaro, 560 mil votos a mais, no único estado do Sudeste em que derrotou o oponente. Zema, que tinha como candidato oficial à Presidência Luiz Felipe D’Avila, liquidou o pleito no primeiro turno com 56% dos votos válidos.

Com o apoio do governador, o presidente mira agora os cerca de 800 mil votos a mais recebidos pelo candidato do Novo no estado, boa parte deles na onda “Luzema” — na gramática eleitoral mineira, o voto em Lula para o Planalto e em Zema para a Liberdade. Para fechar esta conta, no entanto, os mineiros teriam de migrar em peso de um extremo ao outro do arco político.

A história das eleições em Minas mostra que essa transferência não é tão simples. Em 2006 e 2010, por exemplo, Aécio Neves, primeiro, e Antonio Anastasia, em seguida, eleitos governadores em primeiro turno, não conseguiram fazer com que seus correligionários do PSDB — Geraldo Alckmin em 2006, e José Serra em 2010 — reduzissem a vantagem obtida naquelas eleições por Lula e Dilma Rousseff, respectivamente, na etapa seguinte.

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Para além da retrospectiva, o presente também sinaliza obstáculos: o partido Novo não elegeu deputados federais em Minas e fez apenas dois estaduais em um universo de 77 cadeiras. Dois anos antes, quando Zema já era governador, a sigla saiu do pleito municipal sem sequer uma prefeitura conquistada no estado.

— Essa transferência direta de votos jamais aconteceu na eleição para a Presidência em Minas desde que os dois turnos foram adotados — lembra a deputada estadual reeleita Leninha (PT), de Montes Claros, maior eleitorado do Norte de Minas. — Mas seria um erro desconsiderar o peso do governador e a capacidade dos prefeitos, especialmente os de municípios menores, onde muitas famílias têm gente no serviço público, de virar voto, inclusive com coação.

Segunda-feira passada ocorreu um dos movimentos ostensivos, de acordo com relato feito à Procuradoria Regional Eleitoral e ao Tribunal de Contas do Estado. Em uma reunião na sede da prefeitura de Montes Claros, o prefeito Humberto Souto (Cidadania) e o secretário de Desenvolvimento Social da cidade, Aurindo Ribeiro, pediram aos servidores que votassem em Bolsonaro — os funcionários deveriam “tomar um pouquinho de juízo”, segundo um áudio atribuído ao prefeito. A ação levou a federação PT-PCdoB-PV a pedir a abertura de uma investigação por “assédio eleitoral, ameaça e constrangimento a servidores municipais”. Na cidade do Norte de Minas, região cujo relevo e estrutura socioeconômica lembram o Nordeste, Lula venceu com 46,6%, uma diferença de 3.836 votos em relação ao adversário. Zema teve 56% dos votos.

“Prova viva” do voto casado PT-Novo, o casal Selma e Silvinho Cristiano conta que a opção por Lula no segundo turno está cristalizada como os doces à venda na loja no Mercado Municipal de Montes Claros.

— Nos anos Lula abrimos a venda, compramos carro, casa e inauguramos uma filial no aeroporto — diz a comerciante — Mas a fechamos em 2019, pois só ricos voltaram a andar de avião. Ganhávamos quando lá parecia uma rodoviária.

O apoio do governador a Bolsonaro, no entanto, balançou Joseli França, que vende verduras no Mercado:

— Fiz o Luzema, mas estou em dúvida. Além do Zema, me disseram que Lula vai fechar igrejas e transformar o Brasil na Venezuela.

Na noite de quarta-feira, cerca de 350 pessoas se reuniram no estacionamento da prefeitura para ouvir o líder da Convenção das Igrejas Batistas da Região Norte de Minas, Silvio Siqueira, tratar do segundo turno nos termos apresentados a Joseli França.

No ato, que incluiu orações na frente da prefeitura, da Câmara dos Vereadores e do Fórum, com críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e acusações de fraude eleitoral no primeiro turno em Minas, o pastor pediu “intervenção divina” para derrotar “Satanás e sua corja de ladrões”.

— Já mobilizamos 1.200 pessoas para panfletar diariamente nos pontos principais da cidade, e cada fiel vai acompanhar uma pessoa mais velha que deixou de votar no primeiro turno para cravar Bolsonaro no dia 30 — diz o pastor.

Do outro lado da disputa, o PT planeja cadastrar na Justiça Eleitoral voluntários para dar carona a eleitores em bairros mais pobres. Cruzamento feito pelo Valor Data, do Valor Econômico, a partir de dados do TSE, revela que, dos 30 municípios com maior abstenção no país, 23 estão em Minas, inclusive em regiões onde o PT é forte, como o Vale do Jequitinhonha e o próprio Norte de Minas.

Marqueteiro da campanha vitoriosa de Anastasia ao governo mineiro em 2010 e da reeleição de Cláudio Castro (PL) este ano no Rio, Paulo Vasconcelos pondera que a abstenção no segundo turno também tende a aumentar entre eleitores com renda superior a cinco salários mínimos, dor de cabeça para a campanha de Bolsonaro, que venceu em Belo Horizonte no primeiro turno, com 46% contra 42% para Lula. Ele aponta outros complicadores para a virada de votos:

— Um é a eleição municipal de 2024, que já está na cabeça de prefeitos interessados em ficar bem na foto, mas não em bater de frente com um eleitorado aparentemente decidido em seu voto para presidente. Outro são deputados estaduais e federais eleitos cansados para se mobilizarem após uma eleição muito desgastante — diz.

Os candidatos mais votados à Câmara dos Deputados em Montes Claros e Juiz de Fora, respectivamente, não estavam em suas bases esta semana, o que evidencia a dificuldade de mobilizar parlamentares quando seus resultados eleitorais já foram garantidos. Décio Pinheiro (PDT) anunciará na semana que vem se apoiará Lula ou ficará neutro. Ele elogia a administração de Humberto Souto, mas não crê na transferência de votos para Bolsonaro. Já a Delegada Ione Barbosa (Avante), evangélica que oferece “apoio crítico” a Bolsonaro, aposta na mobilização dos prefeitos capitaneada por Zema para virar o jogo em Juiz de Fora, onde Lula venceu por 52% a 38%.

Foi no calçadão da Rua Halfeld, no centro da cidade, que Bolsonaro foi vítima de uma facada, em um dos momentos decisivos da campanha de 2018. Na quarta-feira passada, em ato na Igreja Mundial do Poder de Deus, em Belo Horizonte, Bolsonaro citou em discurso a “segunda vida” recebida na ocasião. Na manhã de sexta-feira, no entanto, militantes do PT eram os únicos em campanha na Halfeld. No material distribuído, panfletos com trechos da Bíblia voltados para eleitores cristãos.

A prefeita Margarida Salomão (PT) não crê em virada, mesmo com a vitória significativa de Zema na cidade (55%).

— Juiz de Fora é o principal centro universitário da região e, com as cotas e programas de crédito estudantil implantadas no governo Lula, moradores das cidades do entorno melhoraram de vida, via educação — diz. — Lula fala diretamente com seu eleitorado, sem mediadores, dificultando a transferência de votos.

À frente de Contagem, Marília Campos (PT) acrescenta como trunfo resgatar junto aos eleitores, especialmente os de renda mais baixa, a memória dos programas sociais do governo Lula. Ao legado, o coordenador-geral da campanha no estado, o deputado federal reeleito Reginaldo Lopes (PT), quer somar a presença de nomes de projeção nacional pelo estado nos próximos dias. No domingo passado, um ato com o ex-presidente em Belo Horizonte reuniu cerca de 50 mil pessoas, segundo a campanha:

— Zema não é um líder de massas — provoca.

Nas proximidades do capítulo final de uma disputa acirrada, que provavelmente será definida por margem estreita de votos, os dois oponentes vão intensificar suas apostas no estado, que tem a tradição de reproduzir o resultado nacional. Lula voltará à Região Metropolitana no dia 21, com atos em Ribeirão das Neves e Ibirité. O deputado federal eleito Guilherme Boulos (PSOL) irá ao Triângulo Mineiro, onde o MTST é forte e o PT teve votação musculosa no primeiro turno. E o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB) e a senadora Simone Tebet (MDB) devem percorrer áreas de perfil mais conservador, como o Sul de Minas. O relacionamento com os prefeitos mineiros está a cargo do senador Alexandre Silveira (PSD), e também é aguardada a participação mais intensa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD).

À frente das redes sociais na campanha em Minas, o deputado reeleito André Janones (Avante) frisa que se deve mirar no adversário certo:

— Seria um erro bater em Zema, que não está na disputa. O foco é seguir mostrando as diferenças entre as candidaturas e enfatizar a defesa da democracia, conquistando os votos de Tebet e Ciro.

Lula, no entanto, já entrou em choque com o governador, ao afirmar na semana passada que ele sentirá “remorso” por estar ao lado de Bolsonaro — na réplica, Zema disse que “mineiro não é gado”.

Pela trilha bolsonarista, o deputado estadual Bruno Engler (PL), o mais votado em Minas, crê na virada. Ele argumenta que o líder de massas no flanco conservador é o próprio Bolsonaro — o presidente voltará mais vezes ao estado — e que o reforço dos prefeitos, sob coordenação de Zema, dará o gás extra necessário. Os laços entre o governo mineiro e o Palácio do Planalto foram reforçados semana passada também com a liberação de verbas dos ministérios da Infraestrutura e Meio Ambiente para projetos no estado e a promessa da criação da pasta da Indústria, com um mineiro no comando. A campanha também busca enfatizar que o candidato a vice de Bolsonaro, o ex-ministro da Defesa Braga Neto, pouco conhecido no estado, é mineiro de Belo Horizonte.

— A escolha é entre um presidente parceiro do governador ou o que ameaçou Zema dizendo que ele terá remorso ao não apoiá-lo — diz Engler.

Os bolsonaristas apostam na força do voto conservador do primeiro turno. Engler, Nikolas Ferreira (PL), alçado à Câmara dos Deputados com recorde de votos no país, e o senador eleito Cleitinho (PSC) percorrerão o estado juntos. O grupo traçou um mapa com os municípios em que Lula e Cleitinho ficaram à frente na apuração, como Teófilo Otoni, para tentar casar o voto entre o senador eleito e Bolsonaro.

Desde a redemocratização, nenhum presidente se elegeu sem ter mais votos nas Alterosas. Na reunião com Bolsonaro e os prefeitos, Zema, que conseguiu em uma semana projetar seu nome nacionalmente, traduziu a disputa em Minas como “uma guerra”, em que “cada um tem uma missão a cumprir” nos próximos dias.

Em meio à batalha eleitoral, direita, esquerda e o combalido centro mineiro só respiram uma trégua ao se abrigarem no mesmo clichê literário. De Guimarães Rosa, extraem o simbolismo de se vencer no estado que reúne em si “as diferentes partes do Brasil” — ao mesmo tempo, “síntese” e “encruzilhada” do país, nas palavras do escritor.

O Globo