Congresso quer R$ 4 bi em emendas sem fiscalização

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Foto: Wilson Junior/Estadão

O Congresso Nacional decidiu colocar R$ 3,8 bilhões em “emendas Pix” no Orçamento de 2023. Esse mecanismo envolve a transferência direta de recursos federais a Estados e municípios, sem fiscalização nem prestação de contas. O repasse é feito conforme a indicação de deputados e senadores e o dinheiro pode ser gasto por prefeito e governadores como quiserem, sem dizer para onde esta indo.

Conforme o Estadão revelou, essa emenda foi usada para bancar shows de artistas sertanejos durante a campanha eleitoral em cidades sem infraestrutura e que ficaram sem atender necessidades básicas da população. O dinheiro cai na conta das prefeituras sem nenhum plano de aplicação e pode ser gasto livremente. É diferente do que ocorre com outros tipos de emendas, que só são pagas após a apresentação de projetos e a entrega efetiva das obras, além da prestação de contas.

O mecanismo une governistas, integrantes do Centrão e oposição e não tem resistência nem na equipe do novo governo. “Pela transição tratamos da PEC do Bolsa Família e adequações do Orçamento para não faltar dinheiro para áreas essenciais e investimentos”, disse o senador eleito Wellington Dias (PT-PI), escalado pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para negociar a votação do Orçamento de 2023. “Sou senador eleito e sei que a direção e líderes da Câmara e Senado estão tratando de regras para mais transparência sobre recursos das emendas.”

A presidente nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), foi a autora da PEC que criou a emenda especial, em 2019. Aécio Neves (PSDB-MG), adversário do PT nas eleições presidenciais de 2014, relatou a proposta na Câmara. Dos 56 deputados do PT, 55 indicaram recursos nessa modalidade em 2023. No Senado, foram cinco dos sete integrantes da bancada.

A emenda Pix se transformou em uma das principais preocupações de órgãos de controle e especialistas em contas públicas, após o orçamento secreto, esquema relevado pelo Estadão. Essa emenda oculta ainda mais informações, pois é repassada sem nenhum indicativo do uso do dinheiro, se é para compra de um equipamento, construção de uma obra ou manutenção de órgãos públicos, abrindo margem para desvios e corrupção.

O pagamento deverá ser feito pelo presidente eleito Lula logo no primeiro ano de governo. A transferência é obrigatória e só foi possível após uma mudança na Constituição, em 2019, que criou o repasse, denominado tecnicamente de “transferência especial”. O mecanismo foi apelidado de “emenda Pix” por consistir em uma transferência rápida e direta, do caixa do governo federal para o caixa dos governos estaduais e prefeituras. O argumento dos parlamentares é eliminar da burocracia. Por outro lado, especialistas alertam para a falta de fiscalização e o risco de desvios.

O valor apresentado ainda será aprovado pelo Congresso até o fim do ano, mas não deve sofrer mudanças. O volume é recorde e mostra o aumento da adesão dos congressistas a esse tipo de emenda, o que desafia os órgãos de controle.

Em 2020, no primeiro ano de existência, as emendas Pix somaram R$ 621 milhões. No ano seguinte, cresceram para R$ 2 bilhões. Neste ano, o Orçamento prevê um total de R$ 3,3 bilhões. Para o próximo ano, o valor proposto pelo Congresso é de R$ 3,75 bilhões, com indicação de 446 deputados e 61 senadores, ou seja, 85% do Congresso.

O dinheiro foi usado para bancar shows sertanejos em redutos políticos de parlamentares no meio da campanha eleitoral deste ano. O deputado federal André Janones (Avante-MG), por exemplo, destinou R$ 7 milhões dessa emenda para Ituiutaba (MG), sua cidade natal. Do total, R$ 1,9 milhão ajudou a bancar uma festa com o cantor Gusttavo Lima e outros artistas no município. Não houve especificação de como o restante do recurso foi usado.

A emenda Pix também foi parar na conta de prefeituras governadas por parentes dos congressistas que apadrinharam os recursos. O deputado Valdir Rossoni (PSDB-PR) colocou R$ 16,9 milhões de emendas PIX na prefeitura de Bituruna (PR), comandada pelo filho Rodrigo Rossoni, nos dois últimos anos. A prefeitura não fez prestação de contas sobre onde aplicou o montante. O parlamentar indicou outros R$ 9,85 milhões para o caixa do município do filho em 2023, valor máximo permitido para esse tipo de emenda.

O deputado ou senador que usa a emenda Pix pode concentrar todo o recurso em apenas um município, Estado ou pulverizar as emendas para várias prefeituras. Geralmente, o dinheiro é distribuído em redutos políticos onde o congressistas tem votos, apesar de a Constituição exigir transparência e determinar que os recursos federais sejam usados para reduzir desigualdades regionais.

“A burocracia não existe. Transferiu, vai logo”, disse o deputado Júlio Cesar (PSD-PI) ao Estadão, ao justificar a escolha pela emenda PIX. Nos dois últimos anos, ele indicou R$ 11,8 milhões para municípios no Piauí nessa modalidade. Para 2023, carimbou mais R$ 7,3 milhões. A justifica é agraciar prefeitos aliados. O deputado admite não acompanhar o uso final do dinheiro. “Aí é com o tribunal de contas. Os prefeitos gostam pela celeridade na liberação e a escolha é feita pelos prefeitos que apoiam a gente”, afirmou.

Especialistas alertam que, mesmo com a transferência direta, os princípios da Constituição e das leis que exigem transparência e legalidade nos atos seguem em vigor e precisam sem cumpridos. “As transferências especiais não exigem apresentação de projetos, acordos e convênios formais previamente. Em tese, essa circunstância pode comprometer a transparência da despesa pública dada a característica pela qual ela é executada”, afirmou o presidente Associação dos Membros dos Tribunaus de Contas do Brasil (Atricon), Cezar Miola. “Mesmo com esse mecanismo, tudo que não podemos cogitar é falta de controle.”

A área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) sugeriu que as emendas PIX sejam investigadas pela Corte de Contas por se tratar de um recurso de natureza federal. Apesar do discurso de que os órgãos locais fazem a fiscalização, ainda não há um instrumento de controle estabelecido.

O TCU analisa uma consulta que questiona justamente a quem cabe fazer o controle dessas emendas e pode desencadear um pente-fino sobre os pagamentos realizados pelo governo federal nessa modalidade.

Uma ala de especialistas defende o papel dos órgãos federais por se tratar de uma transferência com origem na União. Outro grupo, incluindo técnicos do próprio TCU, do Congresso e do governo, diz que o pente-fino deve ser realizado pelos órgãos locais, ou seja, câmaras de vereadores e tribunais de contas estaduais, porque o recurso passa a pertencer ao município no ato da transferência.

Documento elaborado pela Secretaria de Macroavaliação Governalmental (Semag) do TCU sustenta que o tribunal tem a prerrogativa de fiscalizar os recursos por se tratar de uma transferência de natureza federal, mesmo que seja uma modalidade diferenciada. Os técnicos pontuaram, contudo, que isso não afasta o papel dos órgãos locais, responsáveis por investigar os gastos de prefeitos e governadores.

A secretaria do TCU afirma no documento que a falta de um instrumento formal de prestação de contas não exime os gestores públicos de dar transparência o uso do recurso na ponta. A omissão na prestação de contas pode causar punição a quem recebeu o dinheiro. A decisão final sobre a consulta caberá ao ministro Vital do Rêgo, relator do processo.

Inicialmente, a consulta estava nas mãos do ministro Antonio Anastasia, relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criou a emenda no Senado, em 2019, quando era senador. Anastasia, no entanto, entendeu que não deveria ficar com o tema no TCU.

Durante a tramitação da PEC, havia um dispositivo que entrega a fiscalização aos órgãos locais. Após críticas do TCU, no entanto, esse item foi retirado, mas nenhuma norma de controle foi colocada no lugar. Na prática, a emenda PIX foi criada e começou a ser paga com um “vácuo” na fiscalização.

A Atricon elaborou um documento com interpretação diferente da área técnica do TCU, defendendo o poder dos tribunais locais para fiscalizar e orientando os membros a adotarem procedimentos para apurar possíveis irregularidades.

O dinheiro da emenda Pix pode ser usado para construir escolas, praças, asfalto ou bancar a manutenção de órgãos públicos. A exigência é que 70% do total seja usado para investimentos. Além disso, a emenda não pode bancar o pagamento de servidores e as dívidas dos municípios. Tudo isso, porém, não é verificado na hora da transferência, pois não há um “carimbo” identificando o destino final do recurso. O Ministério da Economia oferece um sistema para os prefeitos e governadores informarem no que pretendem gastar o dinheiro, mas a prestação de contas é opcional.

Esse tipo de transferência é reservado apenas para as emendas individuais, aquelas indicadas por cada deputado e senador no Orçamento. O valor das emendas Pix representa 32% de todas os recursos que os parlamentares terão direito de indicar individualmente no ano que vem. Líderes do Congresso se movimentam para ampliar o esquema para as emendas de bancada, aquelas indicadas pelo conjunto de parlamentares do mesmo Estado, mas a ampliação é classificada como inconstitucional e é alvo de um processo no Supremo Tribunal Federal (STF).

Como funcionam as modalidades de repasses:
Emenda individual: é uma indicação que cada deputado ou senador tem direito de fazer ao Orçamento, quer ele seja da base ou da oposição. Desde 2015, o governo federal é obrigado a executar essas despesas. Atualmente, cada parlamentar pode indicar até R$ 19,7 milhões.

Emenda de bancada: parlamentares também têm direito de fazer indicações em conjunto com a bancada de seus Estados. Cada uma das 27 bancadas pode definir como o governo deve gastar R$ 284,9 milhões em obras e serviços. O pagamento também é obrigatório.

Emenda de relator: permite ao relator-geral do Orçamento definir, sem transparência, onde serão alocados bilhões além das emendas individuais e de bancada. É o mecanismo utilizado pelo governo no orçamento secreto.

Transferência especial (emenda PIX): mecanismo de transferência das emendas individuais sem que o parlamentar defina como deve ser usado o dinheiro, numa espécie de cheque em branco. Assim, prefeituras e governos estaduais têm liberdade para gastar a verba.

Estadão