Lula devolverá relevância ao Brasil no mundo

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Foto: Ahmad Gharabli/AFP

Em janeiro de 2019, na sua posse como ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo recheou seu discurso de referências religiosas e chegou a dizer que a teofobia – “o ódio contra Deus” – ganhava espaço na agenda global. “Para destruir a humanidade é preciso acabar com as nações e afastar o homem de Deus, e é isso que estão tentando, e é contra isso que nos insurgimos”, disse Araújo no texto.

O discurso de Araújo, que deixou o cargo no ano passado, explicitou uma diretriz até então inédita na política externa brasileira, destaca Dawisson Belém Lopes, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas (UFMG). “Transformar a religião no nosso filtro primário para a inserção do Brasil no mundo, isto é absolutamente novo”, analisa Lopes, pesquisador visitante da Universidade de Oxford.

Com a saída de Bolsonaro da Presidência, as relações do Brasil com potências como China e Estados Unidos tendem a passar por uma “descompressão”, ganhando mais fluidez, acredita o pesquisador. “A aproximação [do futuro governo] com os Estados Unidos já começou a acontecer durante a campanha eleitoral”, recorda ele, citando visitas da equipe do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à embaixada americana em Brasília.

Não foi por acaso – pontua o especialista em relações internacionais – que Biden ligou para parabenizar Lula pela vitória no segundo turno pouco após a divulgação do resultado oficial, na noite de 30 de outubro.

A volta de Lula à Presidência da República, a partir de janeiro, deverá significar a retomada de uma política orientada por “aspirações globais”. “É algo que estava adormecido há mais de uma década, mas volta forte com Lula”, sustenta Lopes. E o que o país teria a oferecer como moeda de troca para se credenciar a uma posição de destaque no cenário internacional? “Se existe um assunto em que o Brasil pode pleitear ter voz e ter vez, é o meio ambiente. Porque o país tem credenciais objetivas: é o maior reservatório de biodiversidade do planeta. O Brasil é uma potência em termos de geração de energia limpa”, justifica o professor da UFMG.

A partir de 2023, é provável que a diplomacia brasileira retome o uso do “soft power” – o poder da influência – nas relações internacionais. A expressão designa a habilidade de influir indiretamente no comportamento ou interesse de outro país por via ideológica ou cultural, sem o uso de força ou coerção: “Se você olha para o meio ambiente, a deterioração foi muito rápida da nossa imagem internacional. O problema todo envolvendo contestação de democracia, isso tudo leva a uma perda do tal soft power”, diz o acadêmico, salientando que esse declínio teve início antes de Bolsonaro assumir a Presidência.

Na prática, a guinada religiosa da diplomacia brasileira no governo do ex-capitão do Exército significou o abandono pelo país do voto progressista em organismos multilaterais. A promessa de campanha do então deputado federal Jair Bolsonaro (PL) em 2018 de “desideologizar” a política externa brasileira não foi cumprida e tem pouquíssimas chances de prosperar na futura gestão petista. “Política externa, no fim das contas, é política. E política tem ideologia”, argumenta o especialista em relações internacionais. “Bolsonaro, de tão ideológico, chegava a ser sectário.”

Ainda na disputa presidencial de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro inovou ao explorar eleitoralmente temas relacionados à política exterior na sua campanha, disse Lopes: “Bolsonaro se relaciona com os temas de política externa de uma maneira inédita porque ele busca explorar os potenciais eleitorais das temáticas internacionais”, argumenta.

Na gestão de Bolsonaro, o redesenho da política externa brasileira foi muito além da incorporação de princípios religiosos. O diálogo com países como Estados Unidos, Hungria e Rússia, por exemplo, ganhou por vezes caráter informal, com a multiplicação dos “atores” falando em nome do Brasil, em detrimento do corpo diplomático profissional. “Não eram relações com Estados, mas com líderes”, resume o professor.

Em visita oficial à Hungria, no início do ano, Bolsonaro chamou o primeiro-ministro Viktor Orbán de “irmão” e destacou afinidades ideológicas entre os dois. Em outro exemplo da “personalização” da política externa, Bolsonaro se aproximou dos Estados Unidos quando o país era governado pelo republicano Donald Trump, mas se distanciou dos americanos a partir da vitória do democrata Joe Biden, em 2020.

Para além dessa “personalização”, Lopes ressalta a perda de espaço do Itamaraty como formulador da política externa brasileira ao longo das últimas décadas. “Até o início do século XXI, o Itamaraty reinou soberano”, afirmou o especialista em relações internacionais. Com a proliferação de cursos de relações exteriores e a multiplicação de grupos de pressão (Organizações Não Governamentais, por exemplo), esse domínio absoluto terminou. “O Itamaraty perde capacidade relativa de alavancar suas visões sobre o processo de integração do Brasil com o mundo”, resume o acadêmico.

Valor Econômico