Lula reverterá encolhimento de políticas contra fome

Destaque, Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Reprodução/Redes Sociais

O agora presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou no discurso de vitória neste domingo (30) que o combate à fome e à miséria é o “compromisso número 1” do governo.

“Nosso compromisso mais urgente é acabar outra vez com a fome. Não podemos aceitar como normal que milhões de homens, mulheres e crianças neste país não tenham o que comer”, disse Lula.

Levantamento divulgado em junho deste ano mostrou que o Brasil soma atualmente cerca de 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer diariamente, quase o dobro do contingente em situação de fome estimado em 2020.

Os dados foram compilados pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).

Para especialistas ouvidos pelo g1, os números são reflexos da queda nos repasses de verbas do governo para as ações de segurança alimentar, além do esvaziamento da rede de proteção social.

O presidente do grupo de debate sobre transferência de renda Rede Brasileira de Renda Mínima, Leandro Ferreira, disse que o país enfrenta um desmonte da rede de proteção social ao mesmo tempo em que “houve o aumento da própria pobreza, da própria desigualdade”.

“Na saída da pandemia, as pessoas não recuperaram o padrão de renda que tinham antes, por exemplo, por meio do mercado de trabalho. É um efeito que estamos sentindo por conta de uma dupla situação: o desmonte das políticas de proteção social e o aumento dos níveis de vulnerabilidade da população”, avaliou.

Para a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas Gabriela Lotta, nas últimas décadas houve um esforço para se construir uma coordenação federativa que conseguisse conduzir o enfrentamento à desigualdade.

No entanto, de acordo com Lotta, “o atual governo federal abriu mão dessa coordenação nacional” e, assim, “perdeu o papel de protagonista”.

“O resultado é a volta da desigualdade e o aumento da desproteção social da população brasileira.”
Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome de 2011 a 2016, afirmou que, para endereçar a questão da fome, é preciso uma ação coordenada.

“É preciso entender a necessidade de um conjunto de medidas que viabilize não só o acesso à renda, mas o acesso à alimentação de qualidade, o acesso das crianças à alimentação na escola, do acompanhamento de saúde para ver se o desenvolvimento das crianças está adequado […] A fome precisa ser enfrentada com uma estratégia multidimensional”, completou Campelo.

Entre as iniciativas prejudicadas pela descontinuidade ou falta de recursos estão o Conselho de Segurança Alimentar (Consea), o Plano Nacional de Segurança Alimentar, o programa Alimenta Brasil e a merenda escolar (entenda mais abaixo como cada um funciona).

O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) foi extinto pelo governo Bolsonaro no início de 2019.

O conselho era um braço da participação e do controle sociais do Sistema Nacional de Segurança Alimentar (Sisan), responsável pelo assessoramento na criação, implementação e monitoramento de políticas públicas voltadas para o direito humano à alimentação.

“O Consea congregava importante representatividade da sociedade brasileira. Havia força de proposição e de articulação das políticas públicas. Estados e municípios realizavam e realizam conferências, mas o que fazer com as propostas que são levantadas? Levá-las a quem?”, apontou Jean Pierre Câmara, coordenador nacional dos Coletivos dos Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar.

A extinção do Consea não foi um movimento isolado. Outros conselhos que acolhiam representantes da sociedade civil para amparar iniciativas públicas em outras áreas, como saúde, educação, defesa dos direitos humanos e meio ambiente deixaram de atuar na gestão de Bolsonaro.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura no Brasil (FAO) chegou a manifestar, na época, preocupação com a interrupção das atividades do Consea. Segundo a FAO, o colegiado teve de 1993 a 2019 papel essencial nas políticas públicas de combate à fome.

Bolsonaro desidratou também a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar (Caisan), integrante do Sistema Nacional de Segurança Alimentar (Sisan), e que tem como função elaborar o Plano Nacional de Segurança Alimentar, coordenar a execução das ações e acompanhar a alocação de recursos nessa área.

A Câmara ficou inativa de janeiro de 2019 a junho de 2021, quando foi editado decreto presidencial com novas regras para o funcionamento do colegiado.

A aprovação do regimento interno da Caisan, para a qual é exigida a maioria absoluta dos integrantes do colegiado, ocorreu apenas em março de 2022.

O ato de recriação da Câmara, diferentemente do decreto anterior, não estabeleceu a periodicidade dos encontros da Câmara e, mesmo com a escalada da fome, a Câmara fez apenas duas reuniões ordinárias – nos dias 27 de janeiro e 31 de agosto de 2022.

“As Caisans estaduais funcionavam em paralelo à Caisan Nacional. Havia sintonia, funcionava, criava diretrizes importantes para o combate à fome e para o combate à pobreza, para a alocação de recursos. Hoje, não existe o pacto da participação social. A gente não tem um calendário, uma agenda de ações da Caisan Nacional. Não sabemos em absoluto o que o governo federal faz ou deixa de fazer”, explicou Jean Pierr Câmara, coordenador nacional dos Coletivos dos Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar.

O decreto publicado em 2010 que regulamentou a lei do Sistema Nacional de Segurança Alimentar (Sisan) também estabeleceu as diretrizes para a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e definiu as regras para o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

O plano precisa ter vigência de quatro anos e ser revisado a cada dois anos. E, a exemplo do governo federal, as unidades federativas e os municípios que aderirem ao Sisan precisam elaborar planos nos âmbitos estaduais e municipais.

O Brasil teve o seu primeiro Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em 2011, referente ao período de 2012 a 2015. O segundo Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi divulgado em 2016, com vigência até 2019.

De 2020 para cá, contudo, não foi divulgada uma nova versão do Plano. Questionado, o Ministério da Cidadania não informou em que fase de elaboração se encontraria o novo Plano de Segurança Alimentar e Nutricional.

“Mesmo nesse tempo de pandemia e nesse tempo de aumento da fome, da pobreza, de encolhimento de ações programas, não foi feita nenhuma ação estratégia no sentindo de constituir um Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional”, avaliou Jean Pierr Câmara, coordenador nacional dos Coletivos dos Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar.

O Programa Alimenta Brasil foi criado em 2021 em substituição ao Programa de Aquisição de Alimentos, implementado em 2003, que possuía a finalidade de promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar.

A ideia do programa é incentivar a compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar e destinar os produtos às pessoas em situação de insegurança alimentar e àquelas atendidas pelos chamados equipamentos públicos de segurança alimentar – bancos de doação, cozinhas comunitárias, restaurantes populares – e pela rede pública de ensino.

Dos 1.155 municípios que aderiram ao Programa Alimenta Brasil, apenas 254 estão recebendo recursos da ação do governo federal. Os demais ainda não puderam ser contemplados por falta de disponibilidade orçamentária.

A informação consta em nota técnica de 23 de agosto do Departamento de Compras Públicas para a Inclusão Social e Produtiva Rural, do Ministério da Cidadania.

Desde 2016, a aquisição e distribuição de alimentos da agricultura familiar para a promoção da segurança alimentar perde recursos. Naquele ano, a ação tinha um orçamento de R$ 609,3 milhões. No ano passado, recebeu apenas R$ 135,2 milhões.

Em julho deste ano, após promulgação de emenda constitucional que autorizou o estado de emergência – permitindo a criação de uma série de benefícios às vésperas das eleições –, o governo federal editou uma medida provisória, destinando R$ 27 bilhões ao Ministério da Cidadania.

Desse total, R$ 500 milhões foram para o Programa Alimenta Brasil, elevando o orçamento para R$ 699,4 milhões. Após bloqueio, o orçamento do programa caiu para R$ 679,5 milhões. E, desse montante, o Ministério da Cidadania empenhou apenas R$ 240,8 milhões até 27 de outubro.

O presidente Jair Bolsonaro vetou também o reajuste do valor das merendas de creches e escolas públicas previsto no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023. Os parlamentares haviam aprovado uma recomposição de 34%. Se sancionada, seria a primeira correção desde 2017.

Na Proposta de Lei Orçamentária do ano que vem, o governo federal poderia ter aplicado o aumento, mas optou mais uma vez por não fazê-lo. Com isso, o valor previsto para 2023 foi congelado em R$ 3,9 bilhões.

Ou seja, desde 2017, as escolas que atendem alunos do ensino e fundamental e médio, por exemplo, têm apenas R$ 0,36 para gastarem por dia com a merenda de cada aluno.

Em nota, o Observatório da Alimentação Escolar criticou o congelamento dos valores da merenda escolar e reforçou que as “refeições na escola são a principal fonte de comida saudável” das crianças.

“As decisões de Bolsonaro atingem em cheio uma das principais políticas públicas voltadas a garantir o direito à alimentação e nutrição adequadas, em um contexto no qual 33,1 milhões de pessoas passam fome diariamente no país. A alimentação escolar adequada é fundamental para um expressivo número de famílias brasileiras nessa situação.”

O Programa Nacional de Alimentação Escolar oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública.

O governo federal repassa a estados e a municípios recursos de caráter suplementar, que são efetuados em 10 parcelas mensais, sempre de fevereiro a novembro, para a cobertura de 200 dias letivos, seguindo o número de matriculados em cada rede de ensino.

Os serviços oferecidos pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas), organizados por diferentes níveis de complexidade, foram perdendo recursos ao longo dos últimos quatro anos.

Em 2023, de acordo com a Proposta de Lei Orçamentária, a proteção social básica, a primeira porta de atendimento à população vulnerável, terá um orçamento de R$ 31,9 milhões. Em 2019, ano anterior à pandemia, o orçamento proposto foi de quase R$ 1,5 bilhão.

A proteção social especial, o apoio para pessoas em situação de rua, expostas a riscos como trabalho infantil e exploração sexual, também perderá recursos no ano que vem.

A redução, segundo a proposta do governo federal, também na comparação com 2019, será de R$ 362 milhões para R$ 16,3 milhões – uma perda de 95,5%.

Segundo especialistas, o enfraquecimento da proteção social básica diminui a eficiência do Cadastro Único, o principal instrumento balizador das políticas públicas do país. É por meio dele que se buscou, nas últimas décadas, compreender a complexidade do fenômeno da pobreza no país.

Wanda Engel, ministra da Assistência Social entre 1999 e 2002, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, acompanhou a implementação do cadastro. Ela explicou que o Cadúnico permitiu que o governo fizesse um diagnóstico de cada família brasileira.

“O que é único, o que é para todo mundo, é ter uma renda mínima. Mas, a partir daí, a família que tem 10 filhos vai ser diferente da família que tem três filhos. Nesses filhos, pode ter alguém portador de deficiência, pode ter alguém adicto de drogas, pode ter um idoso, pode ter um enfermo”, disse Engel.

O Cadastro Único tem hoje, de acordo com painel atualizado pelo Ministério da Cidadania, 38 milhões de famílias cadastradas, das quais 19,8 milhões estão em situação de extrema pobreza e 3,4 milhões em situação de pobreza.

A taxa de atualização cadastral encontra-se na casa dos 70%. Em 2019, no início do próprio governo Bolsonaro, essa taxa de atualização era de 84%.

Para o presidente do grupo de debate sobre transferência de renda Rede Brasileira de Renda Mínima, Leandro Ferreira, esssa atualização precisaria acontecer sistematicamente, mas o governo federal precisa dar mecanismos e ferramentas eficientes de atualização e inclusão de beneficiários.

“O cadastro deixou de ser utilizado como motor da inclusão para ser utilizado como um filtro da fiscalização. Essa fiscalização ela pode e deve ocorrer para manter a consistência das informações sociais, mas não há um esforço para que na outra ponta essas informações sejam devidamente utilizadas para promover as melhores políticas públicas para quem mais precisa”, detalhou Ferreira.

O representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala, disse que a pandemia da Covid-19 e a guerra da Rússia contra a Ucrânia impactaram severamente a segurança alimentar das populações em todo mundo.

Zavala afirmou, contudo, que no Brasil não existe crise de produção de alimentos e sim de falta de renda, de pobreza e de desigualdade.

E sugeriu que o país precisa:

construir uma proteção social que ajude as famílias mais vulneráveis a aumentar a capacidade de adquirir alimentos, não apenas em quantidade, mas em qualidade nutricional;
produzir alimentos saudáveis a um custo mais baixo, ampliando o acesso a eles;
aprimorar a medição da fome no país, fortalecendo os mecanismos de pesquisa para o melhor monitoramento do problema;
melhorar a governança dos sistemas agroalimentares, construindo uma nova geração de Conselhos de Segurança Alimentar.
O representante da FAO no Brasil declarou também que os países enfrentarão dificuldades para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, dentre os quais está o de acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e promover a agricultura sustentável.

“Mas, a partir de experiências anteriores, acreditamos que o Brasil tem as ferramentas e o conhecimento necessário para mais um vez sair do Mapa da Fome e dar o exemplo ao mundo.”

O Brasil voltou ao Mapa da Fome neste ano. O país havia deixado o ranking global da Organização das Nações Unidas em 2014.

G1