Lula vai abolir teto de gastos
Foto: Ana Rosa Alves (O Globo)
Em seu segundo dia de agenda pública na COP27, a conferência climática da ONU, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva voltou a criticar o teto de gastos, afirmando que “não adianta só ficar pensando em dado fiscal”, mas em responsabilidade social”. O modelo atual, disse o presidente eleito, “tenta desmontar tudo o que é da área social”:
Lula participou de um evento organizado pela sociedade civil, onde ouviu demandas e pedidos de grupos de jovens, cientistas e representantes dos movimentos negro e indígena, por exemplo. Um dia após à entrega da minuta da PEC de Transição ao Congresso, ele disse que tudo que o teto de gasto em sua forma atual faz é “tirar dinheiro da saúde, da educação, da cultura”.
“Você tenta desmontar tudo aquilo que faz parte do social e não tira um centavo do sistema financeiro”, disse ele. “Se eu falar isso, vai cair a bolsa, o dólar vai aumentar? Paciência. O dólar não aumenta e a bolsa não cai por conta das pessoas sérias, mas por conta dos especuladores que vivem especulando todo santo dia.”
O petista comentava o rebuliço do mercado após sua primeira visita ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília, onde funciona a transição de governo, no dia 10. Na ocasião, disse que que a questão social deve ser colocada à frente de temas que interessam ao mercado — o que fez o Ibovespa cair 2,58% naquele dia.
“O que é o teto de gastos? Se fosse para discutir que não vamos pagar a quantidade de juros do sistema financeiro que pagamos todo ano, mas mantivéssemos os benefícios, tudo bem. Mas não, tudo o que acontece é tirar dinheiro da educação, da cultura. Tentam desmontar tudo aquilo que é da área social”, afirmou ele, que chegou acompanhado do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, da futura primeira-dama, Rosângela da Silva, e do ex-chanceler Antônio Patriota, que atualmente comanda a missão diplomática brasileira no Egito.
O primeiro evento de Lula nesta quinta-feira na COP27 originalmente aconteceria no Brazil Climate Action Hub, espaço da sociedade civil, mas precisou ser remarcado para uma sala de conferências maior devido à grande procura. Na agenda de hoje do presidente eleito também estão previstos encontros com o ministro do Meio Ambiente da Noruega, Espen Barth Eide, e com a ministra das Relações exteriores da Alemanha, Annelena Baerbock. Lula também participará de um encontro com povos indígenas e originários, além de uma reunião com o secretário-geral da ONU, António Guterres.
Lula começou sua fala afirmando que um governante escutar as vozes populares. A cobrança, disse ele, “é tão boa ou melhor do que aqueles que concordam, pois ela sempre nos mostra que há algo a fazer”. Um líder “precisa ter humildade para ver que está errado”, afirmou.
O petista também reforçou pontos abordados no seu discurso de quarta, afirmando que o Brasil defende mudanças na ONU com reformas para um Conselho de Segurança mais inclusivo, sem poder de veto e com a presença de países africanos. Disse que tem uma “briga histórica para mudar a governança global”, afirmando que os fóruns internacionais não devem ser “discussões intermináveis”:
“Os US$ 100 bilhões foram prometidos em 2009, e sinceramente, as pessoas parecem que se esquecem. Por isso cobrei, lembrei que há uma dívida que precisa ser paga”, disse, citando que os países que têm floresta devem ser recompensados para cuidar delas.
Segundo Lula, as pessoas mais pobres “subiram só um degrauzinho na escala social da nossa História”, mas que mesmo assim foi muito pouco. Ao lembrar que o país passou de sexta economia do mundo para 13ª, disse que o país “andou para trás” nos últimos anos e indagou como pôde “perder essa alegria” em tão pouco tempo.
“Vamos pegar um país pior do que em 2003, com o desmonte e descrédito das instituições”, disse o presidente eleito. “Passamos a ter um Executivo sem nenhuma relação com a sociedade brasileira. Que, em quatro anos, não se reuniu com ninguém da sociedade civil, mas ofendeu mulheres, negros, periferia, portadores de deficiência.”
A tarefa daqui para frente, disse, é “recuperar o Brasil”, porque “não vejo o Brasil dar certo sem envolver a sociedade nas decisões”, prometendo fazer conferências com grupos como a juventude e as mulheres. Reforçou seu compromisso com a criação de um Ministério para os Povos Originários, o reconhecimento dos quilombos brasileiros, e com o combate ao garimpo e ao desmatamento ilegal.
“Não me preocupo quando dizem que o agro não gosto do Lula. Não quero que gostem, mas que me respeitem”, afirmou, dizendo que seu interesse “não é proibir, mas dizer como fazer as coisas”, frase que a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, também presente e aplaudida no evento, costumava a dizer quando assumiu a pasta em 2003.
O presidente eleito também fez uma forte defesa da cultura, prometendo voltar com o Ministério da Cultura, e criticando o posicionamento da gestão antecessora. Na lógica do governo atual, afirmou o petista, “cultura é uma coisa perigosa, que mexe na consciência das pessoas”:
“Vamos criar o Ministério da Cultura, fazer o país fervilhar do ponto de vista da cultura, inclusive levá-la onde tem que estar, não apenas no teatro municipal, mas à periferia do país”, prometeu o presidente eleito. “Queremos estar onde muitas vezes a sociedade branca não está. Fazer um país mais humano. Se não resolvermos a situação social, não vale a pena governar o país.”
O encontro de Lula com a sociedade civil foi promovido pelo Brasil Climate Action Hub — espaço que surgiu na COP25, em 2019, para ocupar o vácuo deixado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e o silenciamento de vozes defensoras do meio ambiente. Antes da fala do presidente, representantes da sociedade civil foram convidados a falar.
“Os últimos anos foram muito difíceis. É muito importante que a partir de hoje o debate com a juventude climática volte a acontecer”, disse Bárbara Gomes, do Engajamundo, representando os movimentos de juventude, que entregou uma carta ao presidente Lula elaborada por organizações de juventude do Brasil cujo ponto-chave é a criação de um conselho da juventude climática.
Márcio Astrini, do Observatório do Clima, ressaltou que as pessoas mais vulneráveis ao aquecimento global são as que hoje já vivem em maior vulnerabilidade — quem está no semiárido, nas encostas, os agricultores familiares que vão perder sua terra. As mudanças climáticas, disse ele, “são uma fábrica de gerar desigualdades, problemas e pobreza”.
Adalberto Val, pesquisador de peixes da Amazônia, falou sobre os retrocessos para a ciência nos últimos quatro anos, enquanto Douglas Belchior, da Uneafro e Coalizão Negra por Direitos, destacou que “não existe justiça climática sem o combate ao racismo”. Representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Puyr Tembé disse que “justiça social é retomar a demarcação dos territórios indígenas, os territórios quilombolas, as escolas públicas”
“Agradecemos por estar no grupo de trabalho de transição, mas para ir muito além. Estamos preparados para ocupar outras instâncias. Estamos felizes com o ministério, mas estamos preparados.”