Onda republicana nos EUA era uma marolinha

Destaque, Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Saul Loeb/AFP

As leis da política raramente são constantes, mas os resultados das eleições americanas que renovam a Câmara inteira e 35 das 100 cadeiras do Senado, além de dezenas de governadores e um sem-número de cargos estaduais de alto nível, dificilmente causam surpresa. Plantadas bem no meio de cada mandato presidencial, as midterms, como são chamadas, quase sempre impõem derrotas ao mandatário em exercício — alvo fácil de todo tipo de insatisfação popular. Olhando para o passado, apenas duas deram ganhos ao partido no governo: a de 1998, graças a um boom econômico no mandato do democrata Bill Clinton, e a de 2002, quando o sentimento patriótico pós-11 de Setembro favoreceu o republicano George W. Bush. Joe Biden se preparou para o pior — e, no fim das contas, parece até que não se saiu tão mal, ainda mais levando em consideração que seu índice de aprovação rasteja nos 40%.

O resultado projetado mostra que o Partido Democrata deve perder o controle da Câmara para o Republicano, mas por pouco, e talvez, quem sabe, consiga manter a precária maioria no Senado. Mais significativo ainda, a anunciada “onda vermelha”, a cor republicana que iria embrulhar uma legião de trumpistas instalados no Congresso e demais cargos em jogo, parece estar mais para marola. Mas os republicanos tiveram, sim, ganhos entre eleitores tradicionalmente democratas, como a população negra sem ensino superior, que emplacaram dois deputados em Nova York, um bastião azul, e empurraram para a direita alguns swing states, onde o partido vencedor varia, em frequente oscilação.

Por sua vez, azarões democratas conseguiram resistir, sendo os mais vistosos deles na Pensilvânia, onde John Fetterman, político que se recupera de um derrame, amealhou mais votos do que Mehmet Oz — o famoso Dr. Oz da TV —, e no Arizona, onde a democrata Katie Hobbs superava, por mínima margem, a ex-apresentadora Kari Lake, ungida estrela maior da ultradireita, para o governo do estado. O resultado misto reflete o comparecimento em massa de eleitores de ambos os lados (leia a coluna de Vilma Gryzinski na pág. 53), cada um com medo de o outro prevalecer. A corrida às urnas ajudou Biden, que, ao que tudo indica, deve perder menos de dez assentos na Câmara — em sua primeira eleição de meio de mandato, Harry Truman subtraiu 55, Barack Obama, 63, e Donald Trump, 41.

A revolta contra o fim do direito federal ao aborto, decretado pela Suprema Corte em sua formação conservadora atual, inflamou a base democrata, com aumento dos registros de eleitores após a decisão em junho. Através de referendos, Vermont, Michigan e Califórnia garantiram agora acesso ao procedimento em suas constituições estaduais. Mas o problema mais gritante a influir nesta eleição é a alta do custo de vida. De acordo com o Pew Research Center, 79% dos eleitores registrados (nos Estados Unidos, só vota quem põe seu nome na lista oficial) afirmam que a economia é o tema mais importante do país. Em setembro, a taxa de inflação anual nos Estados Unidos permanecia em torno dos 8%, a maior em quarenta anos. A maioria dos americanos ainda apoia o auxílio financeiro da Casa Branca à Ucrânia contra a Rússia, mas as consequências econômicas globais do conflito e o número crescente de cheques em branco a Kiev, enquanto a gasolina e os alimentos continuam caros em casa, desgastaram a imagem do governo democrata.

Se, como tudo indica, vier a perder o controle da Câmara, ainda que mantenha uma precária maioria no Senado, o governo vai sofrer — mais ainda — nas mãos do Legislativo nos próximos dois anos. “Será o fim da agenda de Biden”, acredita Robert Shapiro, cientista político da Universidade Columbia. Para ele, propostas de ampliar gastos sociais por meio do aumento de impostos de empresas e milionários ficam impraticáveis e prioridades como as mudanças climáticas, direitos eleitorais e acesso ao aborto terão destino semelhante. O presidente conseguiu aprovar alguns pacotes com apoio bipartidário, como a Lei dos Chips e medidas de controle de armas de fogo, mas foram exceções. Na briga de foice entre os dois blocos da política americana, a velha e boa negociação visando a compromissos, que norteou governos e congressistas em lados ideológicos diversos até o advento do trumpismo, perdeu quase totalmente o seu efeito.

Uma das primeiras providências de uma maioria republicana na Câmara provavelmente será interromper a investigação interna sobre a invasão da sede do Congresso por apoiadores de Trump, em 6 de janeiro do ano passado. Antecipando a possibilidade, o grupo de deputados está correndo para divulgar um relatório completo de suas descobertas antes do fim do ano. Líderes republicanos sugerem abrir inquérito sobre os negócios passados de Hunter Biden, o filho-problema do presidente, e sobre a retirada dos soldados americanos do Afeganistão.

Mesmo não tendo tomado de assalto o Congresso, como pretendia, o conservadorismo intransigente ameaça lotá-lo de candidatos escolhidos a dedo por Trump, muitos deles novatos na política, todos exagerados nos elogios públicos e negacionistas de carteirinha. Nas primárias, briga de republicano contra republicano, 91% dos candidatos trumpistas prevaleceram. Nos cargos estaduais, muitos deles diretamente envolvidos nas apurações, a vitória de apoiadores de Trump pode preparar o caminho para reações incendiárias aos resultados das urnas em 2024. A esse respeito, aliás, Trump prometeu um “anúncio importante” — com cheiro de candidatura — na terça-feira 15. Mesmo sem a “onda vermelha” esperada, o trumpismo está vivo e forte. Os Estados Unidos que se preparem, porque os próximos anos serão mercuriais.

Veja