Racismo no campo atinge maioria negra
Foto: Luiz Franco/ g1
O campo brasileiro é composto por maioria de trabalhadores negros, mas grande parte das terras não está sob sua posse. Além disso, quanto maior o território, maior o número de brancos proprietários.
Em grandes propriedades, com área equivalente a cerca de 10 mil campos de futebol, 79,1% dos donos são brancos, enquanto apenas 17,4% são pardos e 1,6% são pretos, aponta o Censo Agropecuário 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A população negra, em maioria, está nos estabelecimentos familiares, que são áreas menores, aponta Fran Paula, representante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
O IBGE mostra que esses estabelecimentos ocupam apenas 25% das áreas disponíveis para a agricultura, enquanto terras que equivalem a 500 campos de futebol — consideradas grandes propriedades — representam atualmente mais de 70%.
Pesquisadores ouvidos pelo g1, entre eles o autor do livro premiado “Torto Arado”, dizem que esses dados têm uma explicação histórica.
Isso ainda na colonização, devido à forma que a abolição da escravidão foi feita no país: sem políticas públicas voltadas para os ex-escravizados e uma reforma agrária que, em princípio, não incluiu essa população. Isso deu origem ao que, hoje, é chamado de racismo fundiário.
Para se aprofundar no tema, nesta reportagem você verá:
Por que a maioria das terras pertence a brancos?
Onde estava o negro?
Libertação dos escravizados sem políticas públicas
Constituição de 1988 e o direito ao território
Agricultura de resistência
O cultivo de alimentos a partir do saber tradicional
Do que depende o futuro
A expansão agrícola brasileira para o interior do país se deu a partir de um incentivo do Estado para a população, por meio das sesmarias, que eram terrenos pertencentes a Portugal e entregues para ocupação, explica José Ricardo Moreno Pinho, historiador e autor do livro “Escravos, Quilombolas ou Meeiros? Escravidão e Cultura Política no Médio São Francisco”.
“Eles foram matando e dizimando os índios e adentrando o território e recebendo em troca a posse da terra no formato de sesmarias. Assim que o latifúndio foi feito”, diz Pinho.
O autor explica que, conforme os latifúndios se formaram, as famílias pararam de dar conta do trato da terra, que teve que ser subdividida.
Em 1850, ocorre a primeira tentativa do Estado de regulamentar a propriedade privada no Brasil, a Lei de Terras, conta Fran Paula, representante da ANA. “Até então, [as terras] eram concedidas pela Coroa Real a quem ela bem entendesse”, afirma.
A Lei de Terras se trata das propriedades devolutas ao Estado, que eram improdutivas, explica Pinho.
Segundo a lei, os territórios do Estado só poderiam ser adquiridos por compra e venda ou por doação da Coroa, ficando proibida a posse por usucapião — quando a propriedade é concedida devido ao tempo de ocupação.
“Ela só foi instituída para legitimar uma política que já era vigente no período, que era de concentração de terra na mão de quem detinha o poder e recursos para adquirir essas terras”, afirma Fran Paula.
“Ali você já exclui grande parte da população que não poderia comprá-la [a terra]. E quem é que não poderia comprá-la em 1850? A população escravizada”, completa Itamar Vieira Junior, autor de ‘Torto Arado’ e servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“Se você exclui desde aquele momento a possibilidade dessas pessoas de terem acesso à terra, ali já se estrutura um racismo fundiário. Esse racismo está difundido, permeado por isso que se fala muito em racismo estrutural”, explica o escritor.
Vieira Junior afirma que um exemplo disso é o fato de os conflitos no campo serem vividos, predominantemente, pelos quilombolas e indígenas.
Para Fran Paula, representante da ANA, a própria população negra tem se mobilizado no campo pela luta de seus direitos e pelo fortalecimento dos processos de resistência, a fim de abandonar a reprodução dessa realidade.
Enquanto o território brasileiro era dividido, os negros ainda eram a mão de obra escrava no campo, explica o historiador José Ricardo.
Quando os escravos fugiam de suas regiões devido à perseguição que sofriam, iam para o interior, mais longe do poder estatal. Ainda assim, não conseguiam um trabalho remunerado.
No interior, esses grupos formavam os quilombos, mas não apenas escondidos na mata ou isolados da sociedade, como também dentro de fazendas, com consentimento do dono da terra. Em troca de se manter no local, os escravizados produziam para o fazendeiro.
Nesses territórios, a população negra também cultivava pequenas lavouras para uso próprio. Esse movimento se intensificou após a Independência do Brasil, em 1822. Na época, houve um processo de expulsão dos portugueses, deixando as fazendas abandonadas e disponíveis, explica o historiador.
“Não é que os fazendeiros fossem bons, viu? É porque ele estava ali com a mão de obra gratuita, sem obrigação de manutenção do escravo.
Em troca de permitir que o cara vivesse ali, o cara trabalharia para eles”, explica Pinho.
“E aí, você vai ver outra forma de relação de trabalho, diferente da escravidão, mas que perpetua o poder local”, completa.
Após a Independência do Brasil, em 1822, houve um processo de expulsão dos portugueses, deixando as fazendas abandonadas. Com isso, os escravos, que eram a mão de obra ali, começaram a cuidar da área, concluir o historiador.
Ao longo do tempo, esses escravizados formavam suas próprias pequenas lavouras e, aqueles que recebiam alforria, ganhavam um pedaço de terra para plantar.
É nesse contexto que se passa “Torto arado”, que narra a história fictícia de uma família negra na região da Chapada Diamantina, na Bahia, estado-natal de Itamar Vieira Júnior.
Quando aconteceu a abolição da escravatura, em 1888, essas pessoas ainda não conseguiram uma terra para si. “Eles não tinham onde morar, não tinham onde trabalhar e aí eles ficaram errantes, de fazenda em fazenda, procurando trabalho em busca de moradia”, explica Itamar Vieira Junior.
Para o escritor, isso mostra como a abolição brasileira foi incompleta, sem políticas públicas que ajudassem a população liberta a adentrar a sociedade.
“Embora sejam maioria, essas pessoas não configuram como proprietárias desses territórios. Alguns obtiveram, ainda naquele período do final do período escravista, algum benefício de seu senhor, como herdar a terra. E esse direito sequer foi reconhecido”, explica Vieira Júnior.
O autor de “Torto arado” diz ainda que, aqueles que conseguiram a posse, foram enganados ou provocados a vender a propriedade em períodos de estiagem ou fome. Por exemplo, trocando o território por comida.
“E assim eles foram sendo espoliados, foram perdendo os seus territórios, mas não deixaram de existir, continuam a viver lá, mas sem lugar para morar, porque aquele lugar pertence a outras pessoas.”
Houve também comunidades que foram expulsas de onde viviam e tiveram que ir para outro lugar, inclusive para a cidade. E ainda aquelas onde a expansão das áreas urbanas “engoliu” um quilombo que era rural.
Por esta razão, atualmente, o conceito de quilombo engloba comunidades urbanas e não apenas rurais — estes últimos são conhecidos como quilombos Palmarinos, devido ao de Palmares.
Segundo Itamar Vieira Junior, uma das formas mais importantes para a população negra adquirir terra foi a reforma agrária, ainda que a primeira, na década de 1970, não tivesse esse povo como público-alvo.
Com a redemocratização e a formulação da Constituição de 1988, acontece o que o autor e servidor do Incra chama de “emendas à abolição”.
Na Disposição Transitória da Constituição, o artigo 68 diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
O artigo foi regulamentado somente em 2003, pela Lei Nº 4.887, que estabelece o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação dessas terras. Ou seja, concede a posse da terra para as comunidades quilombolas.
O historiador José Ricardo explica que, para o quilombo ser reconhecido, a comunidade tem que mostrar que possui uma cultura própria e negra. A partir daí, a posse da terra é coletiva, não individual. Se torna também inalienável, ou seja, não pode ser vendida ou cedida.
O método vale, do mesmo modo, para os quilombos urbanos, completa Vieira Junior.
“Essa Constituição de 1988 foi a primeira a reconhecer os povos quilombolas. Ou seja, eles sempre existiram, sempre estiveram aí, mas não tiveram os direitos reconhecidos. E o direito mais proeminente é o direito ao seu próprio território”, diz o escritor.
Ele ressalta que os negros não compõem apenas as comunidades quilombolas no campo, mas também outros grupos étnicos, por exemplo, a população ribeirinha.
A população negra compõe, em grande maioria, a agricultura familiar. Ou seja, não trabalha com os produtos que são considerados commodities, que vão para exportação, como a soja e o milho.
Junto a outras etnias, como indígenas e assentados da reforma agrária, a população negra contribuiu diretamente com o alimento que chega à nossa mesa. Cerca de 70% dos alimentos produzidos vêm da agricultura familiar.
“Às vezes a mão de obra negra não é valorizada e reconhecida, né? Porque foi ela, mesmo sob condição da escravidão, que manteve o abastecimento alimentar do país por muitos anos e ainda”, diz Fran Paula, na ANA.
Além disso, esse povo mora na área em que planta e cultiva para o seu próprio consumo, na chamada agricultura de subsistência.
Para Vieira Junior, isso também se explica com a história, devido à falta de acesso a crédito, recursos e tecnologias que poderiam levar ao aumento da produção. “Essa agricultura de subsistência foi uma forma histórica de resistir também”, afirma.
“Eu tenho certeza de que, se a gente perguntar a qualquer um deles, se eles gostariam de aumentar a produção, de ter um trator, de ter alguma coisa, todos vão dizer que sim”, diz o autor.
Vieira Júnior lembra ainda que, ainda hoje, em muitos casos, os negros do campo têm que dar a “meia”, que é entregar parte da produção para o proprietário da terra em que cultivam. O próprio pai dele passou por isso.
No quilombo Ribeirão Grande Terra Seca, que fica no município Barra do Turvo (SP), no Vale do Ribeira, há uma diversidade de produção tanto na área agrícola, quanto na pecuária rural agroecológica. No local são plantadas culturas de feijão, milho, cana, café, banana e hortaliças em geral.
“Sofremos na pele, diariamente, quando nos negam o direito e o acesso ao mercado ou às políticas públicas, à regularização dos nossos territórios, às nossas práticas de produção agroecológicas tradicionais e nos inviabilizam a nossa cultura e identidade. Tudo isso é privação de direito, tudo isso para mim é racismo”, afirma Nilce Pontes, que é coordenadora estadual pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), por São Paulo.
A falta de tecnologia exige que o povo quilombola preserve os saberes tradicionais de produção, aponta Vieira Junior. “Vale aquilo que é passado de geração em geração, aquele conhecimento ancestral”, diz.
Esse saber tradicional inclui a consciência de que, para continuar produzindo, é necessário um equilíbrio, e que ações, como desmatar, levam a consequências que inviabilizam a produção.
“Quando a gente sobrepõe, por exemplo, a áreas de preservação pelo país, são áreas onde vivem comunidades, não só a comunidades quilombolas, muitas comunidades tradicionais indígenas, principalmente. A gente constata que há uma maneira, talvez, mais equilibrada de se viver com ambiente”, afirma Vieira Junior.
A organização das Nações Unidas para a alimentação e agricultura, a FAO, tem cobrado países do mundo todo para mapear onde estão as comunidades quilombolas.
O sistema de agricultura tradicional das apanhadoras de flores sempre-vivas foi o primeiro no Brasil a ter o reconhecimento internacional de patrimônio global concedido por ela.
“O principal desafio nosso hoje é garantir que a agroecologia seja uma ferramenta política e, ao mesmo tempo, a gente precisa se reconectar com as nossas práticas tradicionais, para conseguir enfrentar as adversidades que são impostas nos nossos campos de luta e de atuação”, explica a quilombola Nilce Pontes.
Por mais que tenha distância temporal do período da escravidão, ela ainda existe, avalia Maria de Fátima Alves, apanhadora de flores na região da Serra do Espinhaço, em Diamantina (MG).
Conhecida como Tatinha, ela coordena a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), que representa regionalmente as comunidades quilombolas e as apanhadoras da região.
“O Estado ainda não conseguiu pagar a dívida, mas é um processo que avança muito lentamente. Isso só vai se resolver quando a população brasileira entender o papel das comunidades tradicionais, por exemplo, na garantia da segurança e soberania alimentar”, completa a apanhadora.
“Acho que o mais importante é o reconhecimento de que essas comunidades existem”, concorda Itamar Viera Júnior. “Acredito que, nos próximos anos, eles poderão ter domínio sobre as terras que habitam há gerações.”
Fran Paula explica que a questão não é somente o acesso à terra, mas também a permanência dessa população nela. Ela explica que as comunidades quilombolas ficam vulneráveis ao avanço de ocupação de posseiros, “bem como de setores, tal qual o agronegócio”.
“A omissão do governo brasileiro, o não cumprimento das leis que garantem o acesso à moradia, terra e alimentação, contribui com o racismo fundiário”, diz a representante da ANA.
“O modo de vida tradicional só é possível se ele estiver atrelado ao território, porque, quando a gente está falando de território, a gente está falando da história, da nossa vida, da nossa relação com a terra que ela vai além”, diz Tatinha.
“Claro que é uma dívida histórica. Uma dívida muito grande. E aí eu falo: muita coisa foi feita, mas esse muito é sempre pouco diante da dimensão do país”, finaliza Itamar Vieira Júnior.