Derrota de Bolsonaro fortaleceu Lira

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Foto: Cristiano Mariz

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-­AL), é um dos mais bem-acabados espécimes do Centrão que habitam o Congresso: filho de político e filiado a uma sigla sem ideologia clara, apoiou todos os governos desde que desembarcou em Brasília como deputado, em 2011 — de Dilma Rousseff a Jair Bolsonaro. Discípulo do ex-todo-poderoso Eduardo Cunha, o alagoano ascendeu rápido: em dez anos, foi líder do partido e presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Casa, período em que aprendeu a compreender o emaranhado de interesses políticos, financeiros e corporativos que movem o Parlamento.

O auge da carreira política se deu em 2021, quando construiu uma vitória incontestável, em primeiro turno, na disputa pela presidência da Casa. Empoderado no cargo, não deixou por menos: em certo sentido, tornou-se mais poderoso até mesmo que Bolsonaro, a cujo conturbado governo conferiu sustentação em um período de pandemia, crise institucional permanente e polarização eleitoral. Nem a derrota do aliado na eleição para Luiz Inácio Lula da Silva abalou Lira, que, em pouquíssimo tempo, já se cacifou para, em fevereiro de 2023, disputar a reeleição montado sobre uma aliança de quase duas dezenas de partidos — do PT de Lula ao PL de Bolsonaro —, o que virtualmente lhe garante mais dois anos à frente da Câmara. Ou seja, se não ocorrer nenhuma manobra ou tropeço inesperados, terá seu domínio ampliado. Oficialmente, sua candidatura será lançada até o fim deste mês.

arte Arthur Lira

O amplo apoio obtido de forma rápida na campanha da reeleição não foi obra do acaso. Uma avaliação lógica sugeriria que uma vitória de Bolsonaro, para quem o deputado vestiu literalmente a camisa na campanha, tornaria certa a sua recondução à presidência da Câmara, ao passo que um triunfo do petista dificultaria a empreitada. Fazia sentido, mas tudo começou a ganhar outros tons quando, minutos após o resultado das urnas, Lira foi a primeira autoridade a ligar para Lula e a reconhecer sua vitória, sem dar brecha para qualquer aventura golpista, como insinuava o bolsonarismo. Depois do primeiro aceno, os dois se encontraram pela primeira vez em Brasília nove dias depois, quando se intensificaram as articulações por uma aproximação.

O movimento, concluído na terça 29, com o apoio declarado do PT, foi catalisado por três fatores bastante práticos: o diagnóstico de que a força do deputado junto ao Centrão faria dele, no mínimo, candidato fortíssimo à reeleição; a indisposição de Lula em cometer os mesmos erros do passado nas eleições da Câmara; e a prioridade absoluta que é preciso dar à PEC da Transição, que garante recursos ao Bolsa Família fora do teto de gastos, e que tem de tramitar obrigatoriamente nesta legislatura — sob Lira, portanto. “Queremos uma agenda de reconstrução do Brasil, com a qual Lira se comprometeu”, justifica o líder do PT, Reginaldo Lopes (MG).

A rápida aproximação também mostra como o petista sabe que não tem margem para errar. Para além das divergências programáticas e ideológicas que marcam a trajetória de Lula e de Lira, é notório o pragmatismo que ambos adotam no tabuleiro político. Aliados relembram que o presidente eleito não tem “memória curta” e “aprende com erros do passado”. A observação faz referência à eleição de Severino Cavalcanti (PP-­PE) à presidência da Câmara, em 2005. À época, o “rei do baixo clero” foi alçado ao cargo ao derrotar uma base petista fragmentada — que lançara Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-­SP). Mais fresco ainda na memória está o fatídico comando de Eduardo Cunha (MDB-RJ) na Casa, que conduziu o impeachment de Dilma. Com o histórico negativo e em meio a um Congresso majoritariamente de oposição, Lula não quer “trocar o certo pelo incerto” ao se arriscar numa candidatura própria. De resto, reconheceu rapidamente a força do Centrão e não cometeu o erro de Bolsonaro, que passou mais de um ano insistindo que não faria alianças no Legislativo até que, diante das dificuldades, fechou um acordo, conduzido, não por coincidência, pelo próprio Lira, em 2020.

arte Arthur Lira

A adesão do PT e seus aliados de esquerda — PV, PCdoB e PSB — foi a cereja do bolo da considerável obra de engenharia política conduzida por Lira e que resultou em um arco de apoio que já reúne mais de 80% dos deputados, da direita à esquerda, do petismo ao bolsonarismo (veja quadro na pág. 25). O PL de Bolsonaro, com 99 integrantes a partir de 2023, selou o apoio na terça, durante um jantar com a presença do alagoano em Brasília. O PSD ainda não se declarou formalmente, mas também vai apoiá-lo, assim como uma parte da bancada do MDB, partido do senador Renan Calheiros (AL), rival figadal de Lira em Alagoas, e de Eunício Oliveira (CE), lulista eleito deputado que chegou a ser cogitado como possível desafiante ao posto. Com mais de 400 deputados ao seu lado, Lira amealha uma influência que não se viu nem nos tempos de outros presidentes poderosos da Câmara, como o próprio Cunha e Rodrigo Maia, presidente entre 2016 e 2021 e que foi derrotado exatamente por Lira ao lançar Baleia Rossi (MDB-SP). Por enquanto, o mandachuva alagoano é candidato único ao cargo — ainda devem aparecer adversários, mas pouquíssimos apostam no surgimento de algum oponente à altura. O PSOL, aliado do PT, é uma das siglas que buscam lançar uma alternativa a Lira.

O capital político reunido por Lira e a estratégia de Lula serão colocados à prova ainda neste mandato. Aliados dizem que o deputado deve manter uma postura independente em relação ao futuro governo, mas vai intensificar as articulações pela aprovação da PEC da Transição, principal ativo envolvido na aproximação entre ele e o presidente eleito e pedra angular da terceira gestão do petista. Protocolado no Senado, o projeto prevê que 198 bilhões de reais fiquem fora do teto de gastos anualmente, até 2026. Embora seja consensual entre parlamentares a necessidade de aprovar uma agenda mínima, que garanta os 600 reais do Bolsa Família e o aumento real do salário mínimo, há entraves nas tratativas, sobretudo a respeito do período em que o benefício ficará de fora do teto. Futuros oposicionistas avaliam que a PEC deixa de mãos amarradas as bancadas eleitas, que pegarão a situação definida para todo o mandato. Entre os caciques que têm essa visão estão aliados de Lira, como o ministro da Casa Civil e presidente licenciado do PP, Ciro Nogueira.

Embora o caminho de Lira esteja aberto, haverá pedras no trajeto. Uma delas está na formatação do próprio acordo com Lula. O presidente eleito vai negociar até o fim para garantir um bloco robusto no apoio à reeleição de Lira, mas que assegure também ao PT e à base aliada posições estratégicas na Mesa Diretora e nas comissões. Haverá ainda pressão, de várias siglas, por posições privilegiadas no manuseio do orçamento secreto — uma fonte de poder de Lira e de preocupação para Lula. O PL ainda espera indicar o vice na chapa — o nome que desponta é o de Sóstenes Cavalcante (RJ), presidente da Frente Parlamentar Evangélica e aliado do pastor bolsonarista Silas Malafaia. “Arthur tem uma habilidade muito grande de conversar com os diferentes interesses da Casa”, diz Sóstenes. A CCJ, um colegiado central no funcionamento da Câmara, tem como pretendentes o PL e o PT — o segundo articula a formação de um bloco para alijar da posição o primeiro, que será dono da maior bancada. O União Brasil, com quem o PT negocia a formação do bloco, quer manter a Primeira Secretaria, posto ocupado pelo presidente do partido, Luciano Bivar (PE), e a presidência da Comissão Mista de Orçamento, estratégica para as emendas de relator. O xadrez de Lira com os partidos precisa ser jogado com cuidado porque haverá uma eleição para o comando do Senado (também em fevereiro) e, não raro, acordos em uma Casa podem exigir reciprocidade na outra. Pior: desavenças em uma podem implodir acertos na outra. O PL quer presidir o Senado no próximo biênio e cobrou publicamente apoio de Lira. O PSD quer reeleger Rodrigo Pacheco.

Outro ponto que demanda atenção é o futuro do orçamento secreto. Se até meados deste ano o mecanismo e Lira eram alvos de críticas do PT e de Lula — que chegou a afirmar que o alagoano articulava para “tirar o poder do presidente da República”, agindo como “imperador do Japão” —, o cenário começou a mudar durante o processo eleitoral. As fustigadas deram lugar a uma certa conivência após as declarações de Lira contra os arroubos antidemocráticos de Bolsonaro e arrefeceram de vez com o reconhecimento da eleição de Lula. Na quarta 30, a questão ganhou um novo capítulo: no dia em que Lira e Lula se encontraram em Brasília, Bolsonaro editou duas medidas que, na prática, suspendem o pagamento das emendas do orçamento secreto. A ação do presidente é vista por deputados como uma vingança contra Lira, que tem no orçamento secreto boa parte de sua força, e cria uma saia-jus­ta a Lula, que pode ter de arcar com as despesas no seu governo para não deixar descontentes deputados que irão votar a PEC da Transição.

O problema não é pequeno, porque, dos 16,5 bilhões de reais previstos para as emendas de relator neste ano, apenas 7 bilhões de reais haviam sido pagos até esta semana. O descontentamento dos parlamentares com o fechamento dessa torneira é enorme. Por outro lado, o gesto de Bolsonaro aproxima ainda mais Lira de Lula, enquanto cabeças do Congresso avaliam que ao menos parte da iniciativa, contida em um projeto de lei, não deve prosperar no Legislativo. “O governo está preocupado com a execução orçamentária e tentará medidas para evitar responsabilização. Não imagino que tenham expectativa que este projeto possa ser votado”, minimiza o relator-geral do Orçamento de 2022, deputado Hugo Leal (PSD-RJ).

O desfecho do episódio é importante também porque Lira ascendeu politicamente na Câmara fixando a imagem de “cumpridor de acordos”, qualidade muito valorizada na selva de Brasília. “Ele tem palavra”, diz Ciro Nogueira. “Arthur dá oportunidade a todos os partidos e lideranças”, completa o deputado Cláudio Cajado, presidente em exercício do PP. Outra virtude muito apreciada pelos deputados em um presidente da Câmara, a de empoderá-los por meio da pauta e de cargos na estrutura da Casa, foi elevada a outro patamar sob Lira. Por outro lado, não é raro ouvir de oposicionistas, inclusive de partidos que agora o apoiam, que ele age com “truculência” ao conduzir as votações. O número de projetos aprovados no plenário aumentou (veja quadro), mas uma reclamação comum sobre Lira recai sobre a intensificação das votações remotas, que reduziram os debates e a ação da oposição.

A ascensão de Lira ocorreu apesar de o político enfrentar problemas na Justiça. Ele disputou as duas últimas eleições graças à decisão de um desembargador alagoano, que em 2018 suspendeu os efeitos de uma condenação por improbidade administrativa. A sentença, que trata de esquema de desvios na Assembleia quando ele era deputado estadual, suspendeu os direitos políticos por dez anos. Lira recorre ao STJ e invoca a nova Lei da Improbidade Administrativa, que ele ajudou a aprovar. No STF, o presidente da Câmara foi alvo de quatro denúncias pela Lava-Ja­to por corrupção, mas só uma foi aceita e se tornou ação penal. O ministro Dias Toffoli segura há dois anos o julgamento de um recurso de Lira que trava a tramitação do processo.

A despeito dos enroscos jurídicos, Lira caminha a passos céleres para se tornar mais poderoso do que nunca. No momento, segundo observa uma pessoa próxima, ele está tendo contato com “dois governos”: em um dia, recebe os petistas da transição; no outro, recebe Valdemar Costa Neto, o mandachuva do PL de Bolsonaro. O malabarismo por diálogo feito até agora por ele e Lula aponta para um futuro de normalidade institucional, o que representa alento após um período de constantes sobressaltos. Passadas as acomodações de início de mandato, porém, se farão necessárias a tramitação de reformas e medidas que combatam a inflação e possibilitem a retomada do crescimento. Esse será o jogo decisivo para o país em 2023, tendo Lira novamente no papel de protagonista.

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