Estudos sobre terrorismo indicam risco de novos ataques no país
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Goethe fez Fausto exasperar-se ao traduzir o Novo Testamento em seu quarto de trabalho. O personagem se rebela logo no primeiro versículo do Evangelho de São João: “No começo era o Verbo”. “Como dar ao verbo tão alto apreço?”, questiona. Após várias tentativas, em que o verbo é substituído por “sentido” e por “energia”, finalmente, Fausto chega à conclusão: “Im Anfang war die Tat!” No Princípio era a Ação. A ação fala mais alto do que a palavra, interrompida na tragédia pelo latido de um cão.
O extremista que escolhe a ação e abandona a palavra nega a própria natureza da política, que está em dizer as coisas oportunas. Não é à toa que Mefistófeles, o inimigo da luz, diz, ao se mostrar a Fausto pela primeira vez, em meio à tradução do texto bíblico: “O gênio sou que sempre nega”. A ação faz a revolução, pensava a esquerda armada dos anos 1960. E é a ação que a extrema-direita dos anos 2020 quer usar para criar e impor a sua visão de mundo, como fizera no passado. Quando isso acontece, a porta para o uso da violência na política se abre. E uma de suas manifestações é o terrorismo.
Não se trata de fenômeno desconhecido. Muitos já o estudaram, como o historiador Walter Laqueur, autor de Uma História do Terrorismo. O uso da violência na política esteve no centro da atuação do squadrismo fascista na Itália dos anos 1920. Foram neofascistas que colocaram a bomba que matou 85 e feriu 200 na estação de Bolonha, em 1980. Também foram responsáveis nos anos 1960 e 1970 pelas bombas em Piazza Fontana, em Milão, em Piazza della Loggia, em Brescia, e no trem Italicus.
Extremistas de direita alemães fuzilaram em 1922 o ministro das relações exteriores Walter Rathenau. A Guarda de Ferro romena assassinou dois primeiros-ministros – em 1933 e em 1939 – enquanto um simpatizante do Narodowa Demokracja matou o presidente polonês Gabriel Narutowicz, em 1922. A Cruz Flechada húngara, a Ustase crota e o IMRO, da Macedônia, também se envolveram em atentados. Em 1995, Timothy McVeigh explodiu um carro-bomba em Oklahoma City, nos EUA, matando 168 pessoas.
Para Laqueur, que trabalhou no Centro de Estudos Estratégicos, em Washington, o jurista alemão Carl Schmitt foi quem expressou de forma mais sucinta os pensamentos dos extremismo de direita em seus escritos sobre o soldado político. A ética do Sermão da Montanha se aplicaria somente ao inimigo privado, o inimicus, e não ao hostis, o inimigo público. A política, para Schmitt, dizia respeito à distinção entre amigos e inimigos. Sua república iliberal tinha como pressuposto a exclusão e não a igualdade.
“Já se apontaram as semelhanças entre a inspiração subjacente ao terrorismo da direita e da esquerda: a suposição de que os feitos são mais importantes do que as palavras; a crença de que qualquer mudança seria para melhor; o desprezo ao liberalismo e à democracia burguesa e um sentido de missão histórica de uns poucos eleitos”, apontou Laqueur. Em outro livro – The future of terrorism: Isis, Al-Qaeda, and the Alt-Right – , ele escreveu que o terrorismo não é produto de psicoses ou de irracionalidade; na verdade, é uma forma extremamente lógica e razoável de violência política que produz resultados. Ao mesmo tempo, a presença de agressões e do fanatismo eram de longe os principais estímulos ao aparecimento do fenômeno.
A obra de Laqueur pode ajudar a entender como situar historicamente a ação do grupo que orbita a porta do quartel-general do Exército, em Brasília. A prisão do empresário George Washington de Oliveira Sousa mostra que ele e seus comparsas acreditam que a ação é mais importante do que a palavra. Não é o bem comum que se busca, mas o dos poucos que atenderam ao chamado de Jair Bolsonaro. Foi em defesa de um mito que Sousa deixou o Pará em uma picape L200 e rumou com um arsenal para o Distrito Federal.
Ali alugou um apartamento no edifício Saint-Tropez, em Brasília, e escondeu um fuzil calibre 308, duas escopetas calibre 12, três pistolas, dois revólveres, gás, detonadores, cordel e emulsão. Gastou R$ 160 mil. E foi frequentar o acampamento dos “patriotas”. Nas palavras do delegado-geral da Polícia Civil do DF, Robson Cândido, o extremista queria explodir instalações elétricas para provocar falta de energia e dar “início ao caos que levaria à decretação do estado de sítio”. O plano envolvia ainda a bomba no estacionamento do aeroporto. O objetivo final era impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Para membros do futuro governo, não há mais como, após a baderna e o vandalismo na capital, com a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal – e, agora, com a preparação de atentados terroristas contra o aeroporto e a rede elétrica, aceitar a manutenção do acampamento em frente ao Forte Apache. Não haveria espaço para a leniência com o esbulho do espaço público para abrigar extremistas que planejam matar, depredar e subverter a ordem pública.
No passado, o poeta Laurent Tailhade teve comportamento semelhante ao comentar a bomba do anarquista Émile Henry, lançada no Café Terminus, na Gare Saint-Lazare, em Paris. “Qu’importe les victimes si le geste est beau.” Que importam as vítimas, se o gesto é bonito. Henry acabou guilhotinado meses depois do atentado, em 1894, que deixou um morto e 20 feridos, o primeiro a produzir vítimas aleatórias na história. Seu rosto no patíbulo despertou a comoção de George Clemenceau, que viu nele a imagem de um “Cristo atormentado”.
No Brasil, os que defendem a legalidade da ocupação da frente dos quartéis são os mesmos que lembram que, em 1966, a Ação Popular explodiu uma bomba no Aeroporto de Guararapes, matando duas pessoas e ferindo outras 14. O alvo era o ministro do Exército, Arthur da Costa e Silva, então candidato à Presidência da República. Naquele tempo, não faltavam agressões, tirania e fanatismo no Brasil. E os atentados se multiplicaram, à direita e à esquerda.
Hoje, é o extremismo de bolsonarista que suscita o pessimismo dos que, como Laqueur, pensam que o terrorismo é uma realidade incontornável no mundo. Em 2021, a inteligência militar já identificava a possível ação de extremistas solitários como um dos riscos à ordem pública. Seria parte da fórmula do caos que se pretendia submeter o País, a mesma que o terrorista confesso admitiu ser o objetivo de suas bombas.
Para policiais ouvidos pela coluna, é provável que o terrorismo não vá desaparecer com a prisão do empresário. Por isso, o Estado deve se armar contra a ameaça e, de imediato, rever as festividades da posse de Lula. Bastará outro Sousa com um fuzil e umas poucas bananas de dinamite para pôr em risco a segurança do eleito, da população e a ordem pública. Apaziguar o País deve ser o objetivo de todas forças que acreditam na política como forma de resolução de conflitos. Fora disso, a resposta deve ter o rigor da lei.
PS:
O CORONEL E OS PETISTAS. Alvo da militância petista inconformada com a liberdade de Flávio Dino (PSB) no Ministério da Justiça, o coronel Nivaldo César Restivo acabou por declinar do convite para ser o secretário nacional de política penal. Acusavam-no de envolvimento no massacre da Casa de Detenção. Pior do que um crime, a acusação é um erro. Ele nasceu da decisão do promotor Luiz Roque Lombardo Barbosa de denunciar por omissão todos os oficiais – e somente os oficiais e não os graduados – que participaram da logística da operação. Dizia que eles se omitiram no espancamento de presos após a chacina. Mesmo aqueles que chegaram mais tarde ao presídio e que só entraram no pavilhão após tudo controlado.
Ao contrário do que passou para a história, não foi a tropa de choque propriamente dita que massacrou e espancou os presos em 2 de outubro de 1992. Quem assassinou 111 detentos foram os homens da Rota, do COE e do Gate, tropas de elite da PM. Estavam armados com metralhadoras e fuzis. Se fosse a tropa de choque, ela estaria com escudos, cassetetes, bombas de gás e balas de borracha. E não haveria massacre. Foi por isso que o júri condenou o comandante da ação, coronel Ubiratan Guimarães, pois como chefe devia prever o resultado de enviar homens com metralhadoras em vez de escudos para acabar com a rebelião.
Quem não conhece o processo e embarca na gritaria militante não sabe nada disso. Denunciado, Restivo nem pronunciado pela Justiça foi. Acusá-lo do massacre é demasiado. Para os colegas do coronel, o petismo apenas destilou seu preconceito contra a polícia. E atingiu um militar crítico de Bolsonaro, que dirigiu os presídios paulistas por quatro anos como secretário da Administração Penitenciária, em uma gestão elogiada pelo Ministério Público. É assim que a militância, dia após dia, aliena aliados que farão falta nas crises futuras.