Guedes deixa a economia cheia de furos

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Foto: Cristiano Mariz/O Globo

O governo do presidente Jair Bolsonaro vai chegando ao fim com dívida pública ligeiramente menor do que a do início do mandato e mais dinheiro entrando em caixa, mesmo depois da pandemia e da Guerra da Ucrânia. Mas a falta de recursos para os mais diversos serviços públicos neste fim de ano e o esfacelamento do teto de gastos indicam que os objetivos traçados ainda em 2018 pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, não foram alcançados. Com essa reportagem, o Valor inicia uma série especial de balanços sobre o governo de Jair Bolsonaro.

“É inegável que houve melhora nos indicadores fiscais tradicionais. Mas o diabo mora nos detalhes”, diz Julia Braga, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Quando Bolsonaro foi eleito, em 2018, Guedes afirmou, por exemplo, que era “factível” zerar o déficit primário ainda em 2019. O resultado primário é a diferença entre receitas e despesas, excluindo os gastos com a dívida, e representa a principal medida de fluxo das contas públicas. O que se concretizou foi déficit de R$ 116 bilhões no primeiro ano do mandato de Bolsonaro

Foi no primeiro ano do governo, contudo, que o Congresso aprovou a reforma da Previdência, cuja previsão de economia na época era de R$ 800 bilhões ao longo de dez anos. As mudanças nas regras previdenciárias eram consideradas urgentes, dado o déficit nas contas públicas, e vinham se desenhando desde o governo Temer. A própria ex-presidente Dilma Rousseff chegou a afirmar em 2016 que o Brasil precisaria em algum momento “encarar” uma reforma da Previdência. As mudanças realizadas ainda no início do governo Bolsonaro foram um dos fatores que permitiram, por exemplo, que o Banco Central (BC) retomasse o ciclo de corte de juros para mínimas históricas já em meados de 2019.

Com a pandemia, no ano seguinte, e as diversas medidas adotadas para combater os efeitos econômicos da crise sanitária, tanto o déficit primário quanto o estoque da dívida pública explodiram. O primeiro alcançou quase R$ 893 bilhões no acumulado de 12 meses até janeiro de 2021. Já a dívida bruta do governo geral (DBGG), principal indicador do endividamento público, subiu quase 15 pontos percentuais em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), atingindo 89% em outubro de 2020.

Passado o momento mais grave da pandemia, a arrecadação federal começou a bater recordes. O movimento foi em parte influenciado por fatores como inflação elevada, alta dos preços das commodities e maior consumo de bens em detrimento de serviços. Como as medidas emergenciais foram realizadas, em sua grande maioria, de maneira temporária, o crescimento da arrecadação se converteu em melhora do resultado primário e queda da dívida pública. Em 2021, impulsionado pela melhora nas contas de Estados e municípios, o setor público consolidado (que inclui União e entes subnacionais) voltou a registrar superávit primário, de R$ 64,7 bilhões, o primeiro desde 2013. Já neste ano não apenas as contas do setor público continuarão no azul como o governo central também registrará o primeiro superávit desde 2013.

O Ministério da Economia projeta que o resultado será positivo em torno de R$ 40 bilhões. Já a DBGG recuou para 76,8% (sempre em relação ao PIB) e, nas projeções da pasta, deve encerrar 2022 na casa dos 73,7% – número ligeiramente menor do que os 75,3% do início de governo.

Pandemia deteriorou indicadores fiscais em 2020, mas a arrecadação cresceu em 2021
Outro ponto destacado com frequência pelo próprio Guedes é que o governo Bolsonaro será o primeiro a entregar as despesas primárias, na comparação com o PIB, em um patamar menor do que encontrou. Nesse caso, segundo os cálculos do Ministério da Economia, o indicador deve encerrar este ano em 18,7%, contra 19,3% no início do governo. “Isso tudo com a pandemia e a Guerra da Ucrânia”, diz o secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Guaranys.

Apesar dos números positivos, especialistas em contas públicas têm apontado problemas na condução da política fiscal, principalmente depois da pandemia. Um exemplo são os furos realizados no teto de gastos, até então a principal regra do arcabouço fiscal em vigor. Nos cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão de monitoramento da política fiscal ligado ao Senado, as despesas primárias fora do teto estavam em 1,5% do PIB no acumulado de 12 meses até maio deste ano – patamar superior ao dos anos anteriores, com a exceção de 2020 e 2021, por causa da pandemia. Entram nessa conta as propostas de emenda à Constituição (PECs) dos Precatórios e das Bondades. Nesse último caso, a poucos meses da eleição presidencial e com validade somente até o fim deste ano, o governo federal usou aproximadamente R$ 50 bilhões, parte disso fora do teto, a fim de aumentar o valor do Auxílio Brasil e distribuir benesses, como auxílios para caminhoneiros e taxistas. A justificativa usada foi que os recursos eram necessários para minimizar os impactos da Guerra da Ucrânia.

“O preço desse pecado nós vamos pagar ao longo dos próximos anos. O imperativo da reeleição fragilizou a regra fiscal mais importante”, diz Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B. No Ministério da Economia, o argumento foi que, mesmo que parte dos gastos fossem realizados fora do teto, novas despesas só eram realizadas se o crescimento da arrecadação fosse em volume correspondente.

No fim de 2022, com o crescimento das despesas obrigatórias, os gastos discricionários, formados por custeio e investimentos e que podem ser cortados mais facilmente, foram comprimidos contra o teto. Somente neste ano foram bloqueados R$ 15,4 bilhões de gastos discricionários como forma de cumprir o teto, o que levou à paralisação ou à diminuição de atividades de serviços, programas ou órgãos tão diversos quanto Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Receita Federal, universidades federais, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), emissão de passaportes, Farmácia Popular e Seguro de Crédito à Exportação (SCE).

Para economistas, esforço pela reeleição levou à flexibilização excessiva na regra do teto de gastos
O então secretário de Tesouro e Orçamento do Ministério da Economia, Esteves Colnago, chegou a afirmar em novembro que o governo federal “nunca passou tão apertado assim” um fim de ano em termos financeiros.

Na quinta-feira, restou à União publicar medida provisória (MP) autorizando R$ 7,56 bilhões em gastos de custeio por meio de crédito extraordinário, ou seja, fora do teto. Para justificar, o Ministério da Economia alegou que houve gastos imprevistos na concessão de novas aposentadorias e pensões.

“Em 2022, especificamente, houve falha de planejamento orçamentário”, diz Joelson Sampaio, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Tivemos expansão de gastos no início do ano e agora estamos cortando despesas essenciais das universidades para fechar no teto”.

Ainda na área de execução de políticas públicas, especialistas criticam o destaque que as emendas parlamentares de relator, que ficaram conhecidas como “orçamento secreto” em função de seu baixo nível de transparência, ganharam nos últimos anos.

Com todas essas pressões, o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), tem dito que receberá uma situação fiscal calamitosa do governo atual. Assim, em parte para recompor despesas discrionárias, vem defendendo que será preciso ampliar em aproximadamente R$ 150 bilhões os gastos previstos para o Orçamento de 2023. Ele ainda não apresentou qual seria o novo arcabouço fiscal do governo.

Guedes argumenta com frequência que o teto, criado durante o governo Temer, foi mal construído e que para, que a regra continuasse de pé, seriam necessárias reformas. Ainda em 2018, afirmava que “a Constituição já carimbou o dinheiro todo”, referindo-se ao volume de despesas obrigatórias do Orçamento – na ocasião, algo como 92%. Ao longo dos últimos quatro anos, o ministro defendeu a importância de desvincular, desindexar e desobrigar (o que chamava de 3D) tanto despesas quanto receitas, como forma de abrir espaço para Congresso e governo federal aumentarem gastos sem que as despesas obrigatórias derrubassem o teto.

“A qualidade das despesas públicas é ruim porque não discutimos a rigidez do gasto obrigatório”, diz também Solange Srour, economista-chefe do Credit Suisse no Brasil.

Mesmo com o destaque que a proposta do 3D teve já a partir de 2019, o ministro não conseguiu avançar nas mudanças. Outras promessas que teriam impacto sobre as contas públicas, como as reformas tributária e administrativa, não foram aprovadas. Já o R$ 1 trilhão de arrecadação projetado com desinvestimentos ficou na casa dos R$ 200 bilhões.

Guedes tem, no entanto, o hábito de afirmar que foi realizada uma reforma administrativa “invisível”, já que não houve a concessão de reajustes salariais para servidores no período. Também diz frequentemente que, com os gatilhos implantados na PEC Emergencial, aprovada em 2021, futuras crises fiscais terão duração menor. Quando despesas primárias obrigatórias superarem 95% das despesas primárias totais, por exemplo, o governo federal ficará proibido de reajustar salários do funcionalismo ou realizar concursos públicos.

Do lado das receitas, o ministro cortou impostos, como o que incide sobre produtos industrializados (IPI), principalmente no último ano de governo. A premissa era que o crescimento da arrecadação permitia a diminuição de alíquotas. Em 2021, a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia projetou que as receitas federais cresceriam no ano R$ 110 bilhões de maneira estrutural. Mas diversos especialistas em contas públicas contestam a tese, afirmando que o crescimento, que continuou em 2022, está mais ligado a fatores conjunturais, como o preço elevado de commodities.

“As receitas continuam bastante influenciadas pelo repasse de dividendos de empresas estatais e pelo desempenho bastante favorável do setor de exploração mineral, fluxos mais voláteis e dependentes dos preços das commodities em reais”, disse o BC no Relatório Trimestral de Inflação divulgado na quinta-feira.

De qualquer maneira, o endividamento público deve crescer novamente nos próximos anos. Na sexta-feira, a Secretaria do Tesouro Nacional publicou o Relatório de Projeções Fiscais, em que calcula que a DBGG cresceria de 73,7% no fim deste ano para 80,2% em 2027, com déficits primários em todos os anos (a exceção ficaria para 2026). Parte dessa trajetória pode ser explicada “em decorrência de premissas adotadas quanto ao pagamento de precatórios e recomposição de discricionárias”. A PEC dos Precatórios autoriza, por exemplo, o parcelamento dessas despesas somente até 2026.

“O governo federal deixou uma conta de precatórios não pagos, que possivelmente serão um problema para 2027”, diz também Tiago Sbardelotto, economista da XP Investimentos.

Até 2031, de acordo com o Tesouro, o indicador recuaria para 77,6%. O patamar seria menor do que o pico da próxima década, mas ainda mais de 12 pontos percentuais acima dos 65% de média dos emergentes, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI).

“As projeções de alta da relação entre dívida e PIB já estão contratadas, o que deixa em dúvida a real contribuição da política fiscal para a sustentabilidade [das contas públicas]”, afirma Ricardo Barboza, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).

Valor Econômico