Lira tenta tornar Lula um refém
Foto: Sérgio Lima
O início da votação do orçamento secreto no Supremo Tribunal Federal escancarou o jogo em curso entre os Poderes. A sessão começou atrasada e o intervalo durou o dobro do usual. Ao longo da tarde, circulou, por iniciativa de ministros partidários da acomodação, textos que advogaram a tese de que a Corte não deveria interferir num tema de competência do Legislativo. No limite, pregam a transparência que, de resto, já foi determinada pela Corte e desrespeitada pelo Congresso.
A demora fez com que nem mesmo a ministra Rosa Weber, presidente da Corte e relatora da matéria, tenha proferido seu voto. A retomada do julgamento na próxima semana só deixa duas opções. A primeira é de um pedido de vista por um dos ministros a votar depois da relatora, mais provavelmente Kassio Nunes, o que pode levá-la a uma decisão liminar que dê validade imediata a seu voto. A segunda é que o julgamento prossiga mas que não haja tempo para o voto de todos os ministros, o que levará sua conclusão para a retomada do ano legislativo em 2023 uma vez que a Corte entra em recesso na semana seguinte.
A destreza dos ministros do “deixa-disso” e a relutância da relatora em buscar a maioria em torno de seu voto sugerem que a segunda opção seja a mais provável. Rosa Weber não distribuiu seu voto para os colegas, tradição numa Corte em que os ministros precisam de convergência em torno de suas teses para vê-las aprovadas. Em vez disso, o que circulou, entre os ministros, foi o texto de um jornalista que praticamente reproduziu as teses apresentadas pelo advogado da Câmara.
O adiamento coloca o governo eleito diante de um dilema. Expõe-se a assumir um risco fiscal que voltou a ser de R$ 200 bilhões, com tantas idas e voltas de puxadinhos, que resolvem até as pendências das emendas de relator que o Congresso não tinha conseguido deliberar com o atual governo. A troco de quê? Paz legislativa, dizem os advogados da acomodação. Por enquanto, a única paz visível é a de Arthur Lira, que reluta em devolver a gestão do país a quem foi eleito para fazê-lo.
Não se trata de enfrentar sua reeleição à mesa. Não é isso que está em jogo. O PT abriu mão de disputá-la. O que está em curso é um projeto de perpetuação do semi-presidencialismo que o Congresso implantou ao longo do governo Bolsonaro sem as responsabilidades que a mudança de um regime acarretaria.
A ver, por exemplo, a situação em que hoje se encontra Arthur Lira. O presidente da Câmara é pré-candidato ao Senado em 2026. Foi o deputado federal mais votado de seu Estado e elegeu mais quatro aliados numa bancada de nove, mas seus candidatos foram derrotados na disputa pelo governo e pela vaga ao Senado. Viu ainda o presidente eleito ganhar, com folga, a eleição em seu Estado, sem o seu voto. Seu correligionário, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, com quem divide o comando do PP, também é pré-candidato ao Senado em 2026, quando acaba seu mandato. Foi igualmente derrotado na disputa pelo governo e pelo Senado no seu Estado e viu o presidente eleito derrotá-lo, no Piauí, com sua melhor votação no país (77%).
Arquitetos do orçamento secreto, ambos são sobremaneira dependentes de Lula para sua sobrevida eleitoral em 2026. A dependência é uma decorrência natural de seus planos políticos futuros, mas o governo eleito parece ignorá-la. Tanto que Lira se viu livre pra fazer chantagens à luz do dia.
Muitas alternativas têm surgido para que os parlamentares não percam a bolada do orçamento secreto de uma hora para outra. Seja por meio do aumento na dotação de emendas individuais e de comissão, seja pela flexibilização do volume de emendas individuais que não passam pela intermediação da Caixa Econômica Federal, as chamadas “emendas pix”. São concessões que atendem aos interesses dos parlamentares mas não de Lira. Seu poder não é conferido apenas pelo volume de recursos mas pela capacidade de alocá-los, que ultrapassa, e muito, as fronteiras de seu partido. Daí a articulação para acomodar as mudanças que deixarão tudo como está.
Lira não quer disputar influência com ministros de legendas nas quais mandava até outro dia. Basta ver, por exemplo, os movimentos de MDB, União Brasil e PSD. Esses partidos aproximaram-se de Lula no segundo turno ou depois da eleição e passaram a ser cativados com a perspectiva de ocupar pastas ministeriais. Se o fizerem com um Orçamento que destina R$ 22 bilhões aos investimentos da União serão meros carimbadores. Em 2023, mantido o atual Orçamento, o Congresso disporá de R$ 38,8 bilhões para emendas individuais, de bancada e de relator – estas últimas consomem metade deste valor.
Juntos, esses três partidos têm 144 cadeiras na Câmara dos Deputados, mesmo número de cadeiras dos demais aliados de Lula. A soma de seus votos não alcança quórum constitucional, até porque há parlamentares dessas legendas que não vão aderir a Lula, mas também há deputados do PP e do PL que vão votar com o governo. A aritmética sugere que o governo vai precisar – e muito – de Lira se quiser avançar com a pauta de reformas este ano, a começar pela tributária.
As articulações de Lira sugerem que ele não se satisfaz com esta interlocução. Só o interesse em disputar um novo mandato como presidente da Câmara, em 2025, parece explicar a ofensiva. Não há clima hoje na Casa para uma emenda constitucional que lhe dê mais dois anos à frente da mesa diretora. Até porque, ao longo desses dois próximos anos, Lula terá como construir uma base política que almejará a condução das casas legislativas.
Muito depende de os nomes a serem indicados pelos partidos para o Executivo escaparem ilesos pelos órgãos de controle que voltarão a atuar sem as amarras do bolsonarismo. Se as alternativas para manter relevância ao deixar a mesa da Câmara são um problema de Lira, as consequências desta PEC são uma questão a ser enfrentada por Lula. Para equacionar a pressão fiscal de sua aprovação, o presidente eleito precisará agilizar as primeiras medidas de seu governo – do revogaço da era Bolsonaro às propostas legislativas que destravarão investimentos.
Daí porque a negociação desta PEC exige uma sintonia fina. Se ceder demais, compromete o início do governo. Se ceder de menos, sacrifica as relações com o Legislativo. Se entregar esta negociação ao Supremo, o governo eleito se arrisca a tomar posse respaldado pela legitimidade de 60 milhões de votos e, em breve, se tornar refém de 594 parlamentares – e 11 ministros.