Lula quer mudar lei para evitar sigilos eternos

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Foto: Wilton Junior / Estadão

O grupo de transição que prepara as ações na área de transparência tem em mãos uma lista de sugestões ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva que vão da revisão de decisões do governo Bolsonaro que impuseram sigilo de 100 anos, à possibilidade de abertura de arquivos cujo segredo já prescreveu e até a criação de um novo mecanismo de fiscalização pela Controladoria Geral da União (CGU) dos recursos repassados a Estados e municípios por meio do orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão.

Na última semana, a equipe do GT analisou dados da atual gestão, mapeou os pontos mais críticos e ainda compilou propostas que vieram de auditores, de dois ex-ministros da CGU, Jorge Hage e Valdir Simão, e também de entidades da sociedade civil.

Até o momento, um dos pontos que mais deu trabalho foi a definição de como tratar o chamado sigilo de 100 anos nos casos em que o governo Bolsonaro se recusou a fornecer informações como a carteira de vacinação do presidente da República ou o processo administrativo aberto pelo Exército para apurar a participação do general Eduardo Pazuello num ato político, sem autorização do comando da Força.

A equipe técnica sabe que não basta um decreto de Lula para revogar tudo, como chegou a ser mencionado pelo petista durante a campanha. Os casos de sigilos impostos sob alegação de “informação pessoal” usam um dispositivo da Lei de Acesso à Informação (LAI) que permite essa proteção, mas o abuso do dispositivo na gestão Bolsonaro fez com que dados de agentes políticos fossem mantidos em segredo apenas para não expor as autoridades.

Partiu do ex-ministro Jorge Hage a sugestão de que o futuro governo revise o decreto 7.224, que regula o processamento dos pedidos de acesso à informação, para assegurar estabelecer uma regra que barre daqui para frente a alegação de sigilo por “informação pessoal” protegido por 100 anos nos casos que envolvam autoridades públicas. “A proteção do direito à privacidade não pode ser usada para blindar agentes políticos e autoridades”, disse Hage ao Estadão. A proposta foi bem-recebida no GT. Integrantes do grupo acreditam que será inevitável editar um novo decreto deixando mais claro o que é de fato um dado pessoal.

Em relação aos casos de pedidos de informação negados, os caminhos cogitados pelo GT para revogar o sigilo são: uma revisão automática da própria CGU com base em precedentes anteriores ao governo Bolsonaro que asseguravam o acesso à informação, mas que foram ignorados pela atual gestão; aguardar que novos pedidos sejam feitos por qualquer cidadão para mudar o entendimento já com a CGU sob novo comando; orientar os próprios ministérios a revisarem os atos que levaram à imposição de sigilo nos casos considerados abusivos.

A equipe técnica analisou todos os pedidos de informação negados pela CGU durante a gestão Bolsonaro. Levantamento em dados da Controladoria analisados pelo Estadão indicam que, no atual governo, foram negados 3,7 mil pedidos pelos mais variados motivos. Se quiser, a CGU, na nova gestão, pode rever todas as decisões. Como explica um integrante do GT, não há ato administrativo que não possa ser anulado ou revisto pela própria administração. E os pedidos de informação negados são fruto de decisões administrativas da Controladoria na gestão de Bolsonaro, passíveis de revisão no governo Lula.

O ex-ministro Valdir Simão levou ao grupo de transição a proposta de instituição de um Conselho de Transparência com acesso a todas as informações do governo, incluindo as sigilosas. Composto por representantes do próprio governo e da sociedade civil, esse conselho já existe, mas sua atuação hoje é meramente consultiva. Segundo Simão, ter um Conselho com poder para assegurar que os atos administrativos preservam a transparência é garantia de que as decisões serão tomadas de forma adequada.

O GT recebeu da agência Fiquem Sabendo, que atua na área de acesso à informação, relação de todos os documentos classificados pelo governo e que o prazo do sigilo já estaria prescrito. A Lei de Acesso à Informação prevê que, além do sigilo de 100 anos para informações pessoais, documentos da administração pública podem ser classificados em reservados, secretos ou ultrassecretos, ficando, respectivamente, protegidos pelo prazo de 5, 15 e 25 anos. Ao fim desse período, a informação pode ser liberada. Uma das propostas discutidas no GT é a possibilidade de assegurar o acesso aos casos em que esse sigilo já caducou.

A atual direção da CGU tem contestado a acusação de que o governo Bolsonaro abusa do sigilo. A Controladoria já se manifestou sobre o tema e disse que há um “evidente equívoco nas narrativas que mencionam decretação de sigilo de 100 anos no Poder Executivo federal” porque há previsão legal para proteção de informações que dizem respeito à intimidade e vida privada, honra e imagem. A CGU sustenta ainda que não foi identificado nenhum abuso na aplicação do artigo da LAI que trata do sigilo de 100 anos.

Valdir Simão também sugeriu ao GT que a CGU passe a fazer monitoramento dos recursos que são liberados por meio do chamado orçamento secreto, esquema de distribuição de recursos sem transparência revelado por uma série de reportagens do Estadão. Para ele, os auditores podem contactar governos estaduais e prefeitos para onde os recursos são destinados pelos parlamentares, assegurando preventivamente que o dinheiro público seja aplicado corretamente. “Não basta só fazer operação especial com a Polícia Federal depois que houve o desvio, é preciso ter um monitoramento.”

A CGU liga para o governo ou prefeitura como quem diz ‘estamos de olho’”, disse Simão. Ele acredita que o mesmo mecanismo pode ser adotado no caso das chamadas emendas PIX, modalidade de repasse direto de recursos da União indicados por parlamentares a prefeituras em que o chefe do Executivo local pode aplicar os recursos diretamente, sem necessidade de seguir uma orientação federal.

Na atual gestão, o ministro Wagner Rosário já declarou publicamente que as informações do orçamento secreto estão todas disponíveis no portal de Transparência do governo federal. Quando postou a informação em rede social, Rosário foi contestado questionado por homem que queria saber se era, então, possível saber quem era o parlamentar por trás da indicação dos recursos. Rosário acabou admitindo que essa informação não era conhecida.

 

O trabalho do grupo de transparência não se limita à atuação da CGU no governo. O GT também trata da atuação de outros órgãos de controle do governo como o Coaf (Conselho de Administração Financeira) e a Comissão de Ética da Presidência da República. A discussão sobre a atuação da Advocacia Geral da União (AGU) também está incluída neste grupo. Por causa da diversidade de temas, o trabalho foi dividido em subgrupos. Cada um deles produziu um relatório específico apontando diagnóstico do que encontrou na atual gestão e propostas de ações que devem ser adotadas pelo futuro governo.

Os ex-ministros Valdir Simão e Jorge Hage sugeriram que o GT também colocasse na mesa a discussão sobre os acordos de leniência que envolvem vários órgãos do Estado como a própria CGU, a AGU, o Tribunal de Contas da União e até mesmo o Ministério Público Federal. Simão e Hage concordam que é preciso haver ajustes na legislação para evitar que órgãos públicos atuem de forma isolada nas negociações com empresas envolvidas em casos de corrupção, como ocorreu durante a operação Lava Jato em que o MPF fechou acordos com grandes empresas e que foram contestados por outros órgãos de fiscalização. “É urgente encontrarmos uma forma de os órgãos atuarem de forma mais unificada ainda que cada um deles tenha um prisma diferente”, diz Hage.

Estadão