Lula vai ao STF contra “pegadinhas” tributárias
Foto: Mateus Bonomi/AGIF/Estadão Conteúdo
Com uma série de pautas à vista no Supremo Tribunal Federal (STF) com possibilidade de impacto fiscal bilionário, o governo eleito definiu a estratégia para reforçar as articulações com a Corte. O futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, visitará cada um dos 11 magistrados logo após a posse, marcada para o dia 1º de janeiro. O périplo é parte do plano, definido em conjunto com o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para que o próximo governo construa boas relações com o Judiciário, alvo recorrente do titular do Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro (PL), ao longo dos últimos quatro anos.
A postura belicosa adotada por Bolsonaro em tratativas com o Poder vizinho é vista por Lula e seus aliados como um dos componentes mais favoráveis à criação de um ambiente harmônico. Internamente, os petistas acreditam que só o contraste com Bolsonaro já contribui para que os ministros dos tribunais superiores demonstrem boa vontade, ao menos inicialmente.
No caso do Supremo, a movimentação de emissários do PT e de Lula também visa a abrir pontes antes do julgamento de processos que podem custar até R$ 800 bilhões às contas de governos, já no primeiro ano do novo mandato. A cifra se refere a um conjunto de dez ações, mapeadas pelo Instituto Justiça e Cidadania, em levantamento obtido pelo GLOBO.
O primeiro embate deve ocorrer logo em fevereiro, quando acaba o recesso do Judiciário, e a Corte deverá voltar a discutir o diferencial de alíquotas (Difal) do ICMS entre estados. O caso estava sendo analisado em plenário virtual, mas a presidente do STF, ministra Rosa Weber, pediu destaque na semana passada, e a análise será reiniciada no ano que vem no plenário físico.
Esse mecanismo divide a arrecadação entre o estado onde fica a empresa vendedora de um produtor e aquele em que está o consumidor. A discussão é se os estados já podiam cobrar o imposto neste ano ou só em 2023, como querem as empresas.
Em caso de decisão a favor das empresas, estados do Nordeste alegaram ao STF que haveria perdas de R$ 9,8 bilhões de arrecadação referente a 2022. Emissários do PT têm procurado a Corte para tratar dessa e de outras ações com impacto fiscal, e mostrar que estão acompanhando os casos. Entre os futuros ministros de Lula, há ex-governadores que emplacaram sucessores em estados nordestinos, como Rui Costa (Casa Civil), Camilo Santana (Educação) e o próprio Dino.
Nas últimas semanas, segundo relatos ao GLOBO de interlocutores do STF, o futuro ministro da Advocacia-Geral da União (AGU) com Lula, Jorge Messias, buscou alguns gabinetes de ministros da Corte para falar sobre a ação envolvendo o Difal. Quem também foi escalado para fazer contato a respeito da pauta fiscal pela equipe do PT foi o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
A história dos governos petistas indica, contudo, que a relação com o Judiciário costuma atravessar solavancos. Antes de ter seus processos anulados pelo STF, que considerou Curitiba o local incorreto para os julgamentos e declarou o ex-juiz Sérgio Moro suspeito no caso do tríplex do Guarujá, Lula fez reiteradas críticas a magistrados, inclusive do STF. Também houve embates durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Agora, prestes a assumir a Presidência da República pela terceira vez, Lula avisou tanto aos membros do STF quanto aos ministros encarregados de fazer a interface com o Judiciário qual é o melhor caminho para evitar crises dentro e fora dos tribunais: articulação política eficiente. Uma das primeiras visitas institucionais do petista após vencer a eleição foi justamente aos integrantes do STF, uma semana depois do segundo turno. Na ocasião, ele prometeu trabalhar para exaurir negociações políticas em temas considerados polêmicos, na tentativa de evitar a judicialização e, consequentemente, possíveis problemas com representantes da Justiça.
— Quanto mais se valoriza o processo político, com articulação e construção de consensos, menos tensões tendem a surgir no Judiciário. Isso é o que presidente tem defendido — afirmou Messias ao GLOBO.
A escolha de Flávio Dino para comandar o Ministério da Justiça passa pela preocupação de Lula em pavimentar vias de diálogo. Juiz de carreira, Dino trocou a magistratura pela política. Antes disso, porém, construiu boas relações com personagens que hoje ocupam cadeiras importantes no Judiciário. Entre os quadros do Supremo, ele costuma se dizer amigo de Dias Toffoli, com quem Lula rompeu durante a Operação Lava-Jato. Além disso, conhece Luís Roberto Barroso desde 1995, e foi colega de Alexandre de Moraes, alvo preferencial de Bolsonaro, quando ambos estavam no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Também mantém canal aberto com Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.
Uma vez oficializado ministro da Justiça, Dino pedirá audiências a todos. A demanda para que conversasse com os principais atores do Judiciário partiu do próprio Lula.
— Vou visitar um por um. A relação do futuro governo com o Judiciário está definida no que diz o artigo segundo da Constituição: independência e harmonia — resumiu Flávio Dino, que antes mesmo do périplo previsto para depois da posse já se reuniu com quatro ministros da Corte.
Apesar do esforço para não deixar que as contendas surjam, o futuro governo tem clareza de que processos judiciais são inevitáveis, e que alguns temas com impacto orçamentário estão na iminência de entrar na pauta do Supremo. Na lista elaborada pelo Instituto Justiça e Cidadania, o processo que pode gerar o maior impacto financeiro para o governo, de até R$ 472 bilhões, é um questionamento sobre a forma como as empresas podem aproveitar créditos de PIS/Cofins. No fim de novembro, o plenário rejeitou o pedido de empresas, que tentavam abater no cálculo das contribuições sociais todas as despesas necessárias à realização da atividade. Ainda há, contudo, possibilidade de recursos, para esclarecer pontos da decisão.
Outros dois processos com possibilidade de ir a julgamento em 2023 envolvem o entendimento do STF de que ICMS não compõe a base de cálculo para efeito de incidência do PIS e da Cofins.
Um dos casos trata da extensão desse entendimento, válido hoje somente a partir de março de 2017, e cuja previsão de impacto é de R$ 65,7 bilhões. Outro recurso, que discute se é legal a inclusão do ISS na base de cálculo das contribuições referentes a esses tributos, pode ter impacto de R$ 35,4 bilhões.
O futuro governo também pretende se debruçar sobre processos com repercussões políticas. É dado como certo, por exemplo, que o plano de revogar medidas de Bolsonaro que flexibilizaram o acesso às armas seja recebido com uma série de questionamentos judiciais, tanto de aliados do atual presidente quanto de entidades da sociedade civil ligadas ao armamentismo.
Na semana passada, o STF proferiu duas decisões bem recebidas pelo entorno de Lula: a autorização para que as despesas com o Bolsa Família ficassem fora do teto de gastos e o fim do chamado orçamento secreto. As decisões deram maior fôlego a Lula em tratativas com o Congresso.
Por ora, os nomes do STF que deixam a próxima administração em alerta são os dois ministros indicados por Bolsonaro, André Mendonça e Nunes Marques. Dino já conversou com ambos. Internamente, a avaliação da equipe de transição é de que ambos não serão intransigentes com o novo governo em ações, por exemplo, relacionadas a temas econômicos.