Os incríveis indígenas que apoiam Bolsonaro
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Há cerca de duas décadas, indígenas Haliti-Paresi, de Mato Grosso, investem na agricultura como forma de subsistência, em meio ao avanço das lavouras no estado. O direito de explorar comercialmente a terra é o principal ponto de convergência entre o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e lideranças da etnia, que se articulam há mais de 30 dias em manifestações a favor do atual mandatário, derrotado nas urnas.
Em março, representantes da comunidade estiveram em Brasília para participar da cerimônia de entrega da medalha de Mérito Indigenista ao presidente. Quase oito meses depois, voltaram à capital federal durante as mobilizações de 15 e 30 de novembro, quando se instalaram no acampamento montado no Quartel-General do Exército.
Representantes indígenas também têm aparecido em movimentações na capital federal. Nesta semana, por exemplo, alguns deles foram vistos durante uma manifestação na porta do hotel onde o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está hospedado.
“O Senado não vão [sic] agir? Nós temos agora que largar de conversar e partir para a ação. O povo brasileiro está fazendo manifestação de forma pacífica, caminhando nas 4 linhas da Constituição, mas isso tem limites”, afirmou o cacique Rony Walter Azoinayce Paresi, durante audiência pública da Comissão de Transparência, Fiscalização e Controle do Senado, na quarta-feira (30/11).
“Estamos esperando mais o quê? Todos já sabem, está visualmente claro que foi fraudada essa eleição. Senão, já teriam divulgado os códigos-fonte e apresentado à população”, completou.
Ele também questionou a segurança das urnas eletrônicas e fez críticas ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao chamá-lo de “cabeça de ovo”. “O recado foi dado na audiência pública. Agora vamos para tudo ou nada.”
O cacique da aldeia Wazare é uma das principais lideranças de Campo Novo dos Parecis, no noroeste de Mato Grosso. Ele desembarcou em Brasília após viagem ao Egito para participar da 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), a convite do governo do estado, comandado por Mauro Mendes (União Brasil) – um dos mais atuantes aliados de Bolsonaro.
Campo Novo integra uma região com duas Terras Indígenas (TIs) da mesma etnia: Utiariti e Paresi, com mais de 1 milhão de hectares e 65 aldeias. Desses, 20 mil hectares são destinados para atividade agrícola mecanizada – aproximadamente, 1,7% do território.
A iniciativa, que engloba os povos originários Paresi, Nambikwara e Manoki, tem como base a geração de trabalho e renda na atividade agrícola em grande escala, dentro das TIs. A possibilidade de instaurar uma lavoura no território demarcado foi regulamentada por uma Instrução Normativa Conjunta de 2021, assinada pela Funai e pelo Ibama.
A norma abre espaço para produção agrícola no interior de terras indígenas, não apenas pelos moradores das aldeias, mas também a partir de associações com produtores de fora. Pela nova regra, só fica proibido o arrendamento puro e simples, ou seja, o aluguel do território demarcado por não indígenas.
A proibição legal de explorar terras indígenas demarcadas não tem impedido que produtores fechem acordos com aldeias em todo o país. Contudo, no caso dos Paresis, a atividade é coordenada por quatro cooperativas: Coopiparesi, Coopihanama, Coopermatsene e a Coopirio. O cultivo é alternado – soja no verão, milho, feijão e girassol, no inverno.
Todo o rendimento comercial, estimado em R$ 120 milhões ao ano – segundo informações da Funai –, é distribuído pela cooperativa tanto aos que trabalham quanto entre os que não atuam diretamente nela, contribuindo com a subsistência de quase 3 mil indígenas do local.
A possibilidade de proibição do plantio dentro da terra indígena, mediante mudanças nas ações do governo que assumirá para os próximos quatro anos, amedronta os moradores das aldeias. Os representantes da etnia também se mobilizam pelo que chamam de luta para “que os políticos corruptos sejam banidos das nossas representações políticas”.
Os Paresis têm uma relação próxima com Bolsonaro e com a bancada ruralista no Congresso. Em fevereiro de 2019, os então ministros do Meio Ambiente e da Agricultura, Ricardo Salles e Tereza Cristina, visitaram as aldeias da região, a convite do deputado federal José Medeiros (Podemos-MT), para conhecer a produção de soja local.
“A questão política para a sociedade indígena é bem nova. Ainda estamos abrindo nossos olhos para entender a política do homem branco. Pro indígena, é diferente – a gente da aldeia escolhe quem quer. É algo bem complicado para nós, mas com o tempo, a gente tá aprendendo”, conta Alex Zukemai, 19, que trabalha na Coopiparesi.
Segundo ele, a etnia apoia nas urnas “aquela pessoa que olha pra comunidade indígena em geral”. “Nesses anos, a gente foi bem cuidado no mandato do presidente Bolsonaro. O trabalho que eles fizeram foi bem produtivo pra gente”, completou.
Na atual gestão da Funai, sob liderança do presidente Marcelo Xavier desde 2019, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) visando regularizar a produção agrícola, por meio de lavouras mecanizadas, nas Terras Indígenas Rio Formoso, Paresi, Utiariti, Tirecatinga e Irantxe, em Mato Grosso.
Com o TAC, os indígenas retomaram a utilização da área designada para a produção agrícola mecanizada, a fim de viabilizar a comercialização dos produtos. O documento foi assinado pela Funai, Ministério Público Federal, Ibama e pelas cooperativas lideradas por indígenas.
Getúlio Pereira Rodrigues, 37, é de origem indígena e vive na região de Campo Novo há quase 30 anos. Ele mora na aldeia Chapada Azul, chefiada pela cacique Dejanira Quezo. Ela também viajou a Brasília para participar de atos pró-Bolsonaro.
Ex-servidor da Funai, Getúlio afirma que a gestão Bolsonaro “foi o melhor governo que eles já tiveram”, em termos de cuidados com as aldeias dentro do território Paresi.
“O governo Bolsonaro com o povo Haliti parece tratar ali como dois amigos [sic]. O povo Paresi tem acesso em Brasília onde ele quiser, inclusive foi esse próprio governo que ajudou nosso projeto de lavoura mecanizada a caminhar”, explica.
“Eu tenho orgulho do meu povo, o povo Paresi sempre esteve em todas as linhas de frente de batalha, seja internamente, ou politicamente. O Paresi sempre foi muito guerreiro, arregaça as mangas e vai à luta”, afirmou Getúlio. Contudo, ele conta que a mesma decisão que dividiu o país nas urnas foi motivo de polarização entre etnias e dentro das próprias aldeias.
“Nós temos Paresis de esquerda também, é uma democracia. Por mais que nós, que somos de direita, sejamos maioria, essa questão dividiu aldeias. Também tivemos atritos com representantes de outros povos, inclusive que estão na COP27, como o Rony”, relatou.
Durante a 27ª Conferência do Clima, um grupo de mulheres indígenas brasileiras fez uma manifestação cultural para criticar representantes de outras etnias alinhadas com Bolsonaro, por falarem “positivamente” sobre a gestão do mandatário no evento.
“Alguns ‘parentes’ têm sido captados para falar pelo governo e isso é muito ruim para nossa luta. A gente está aqui reivindicando direito de proteção territorial e tantas outras reivindicações do nosso povo. É inaceitável a gente concordar com isso nesse momento aqui”, afirmou a ativista Vanda Witoto, em declaração durante a conferência no Egito.
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Para o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira, já era previsto que determinadas comunidades mantivessem o apoio ao governo Bolsonaro e não reconhecessem o resultado das urnas. Isso, segundo ele, deve-se ao interesse de manter contratos com o agronegócio e com a iniciativa privada para exploração dos territórios. “Acreditamos que eles foram enganados”, diz.
Cerqueira avalia que pautas essenciais, como demarcação de territórios tradicionais, não tiveram espaço nos quatro anos de governo. “Não identificamos nenhum avanço porque o projeto principal das populações indígenas no Brasil é a demarcação de seus territórios. E isso não se deu. Já em campanha, o presidente Bolsonaro dizia que, se eleito, não demarcaria um centímetro de território indígena”, observa.
O Conselho Indigenista Missionário descreve que a gestão de Jair Bolsonaro deu prioridade a medidas contrárias aos interesses das comunidades e do meio ambiente, como a permissão de terceirizar a exploração das terras indígenas para o agronegócio e para a iniciativa privada. “O governo Bolsonaro utilizou uma estratégia econômica e financeira para atrair algumas lideranças e, em consequência, alguns povos”, afirma.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Mato Grosso é o terceiro estado brasileiro com maior índice de desmatamento entre agosto de 2021 e julho de 2022. No período, foram desmatados 1.906 quilômetros quadrados de florestas na região.
A explosão do desmatamento durante a última gestão Federal é resultado do abandono do sistema de proteção ambiental, de acordo com Raul do Valle, especialista em Políticas Públicas do WWF-Brasil.
“Nos últimos anos, o desmatamento associado a atividades ilegais aumentou exponencialmente por conta da redução de fiscalização e o desmonte dos órgãos ambientais. Os números consolidados pelo sistema sobre o desmatamento da Amazônia confirmam que é urgente a retomada dos mecanismos de comando e controle”, afirmou Valle.
O desmatamento, um dos principais causadores das alterações climáticas locais, aliado às mudanças do clima global, traz impactos significativos ao agronegócio brasileiro, segundo a organização. Entre 1985 e 2012, a derrubada de árvores causou redução média de 12% na produtividade do cultivo da soja na Amazônia e 6% no Cerrado, com decréscimo de mais de 20% em algumas regiões dos dois biomas.
Com a eleição de Lula, o governo que assumirá o comando do país a partir de 2023, além de prometer a reversão do cenário de desmatamento, sugere a criação de um Ministério de Povos Originários. A pasta atenderia pautas relacionadas aos indígenas do Brasil. Dessa forma, o secretário-executivo do Cimi diz esperar que o novo governo, com diálogo, reverta a resistência de comunidades que apoiam Bolsonaro.
Cerqueira, por outro lado, ressalta que a entidade ainda não vê com clareza se a constituição de um novo ministério é a melhor medida para atender as demandas das etnias brasileiras de forma ágil. “O ministério tem uma estrutura muito pesada, e isso precisa ser muito bem pensado”, pondera.