Saúde virou alvo de disputa política com Bolsonaro

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Foto: Reprodução

Em outubro de 2020, quando já havia 150 mil óbitos por covid-19 e a Saúde era chefiada pelo terceiro ministro desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro ordenou ao então titular, o general Eduardo Pazuello, que cancelasse um protocolo assinado na véspera para compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, vacina de origem chinesa desenvolvida pelo Butantan.

Um dia antes, Pazuello havia anunciado: “a vacina do Butantan será a vacina do Brasil”. O que incomodava Bolsonaro, ele admitiu, era o protagonismo do então governador João Doria (SP) na compra da vacina. Na época, Doria ainda era visto como potencial concorrente na eleição de 2022.

Nesta segunda reportagem da série do Valor de balanço do atual governo, o cancelamento da vacina foi citado como o ato mais simbólico daquilo os especialistas destacam como a principal característica dos anos Bolsonaro na saúde: a extrema politização da gestão.

Professora nos EUA, a microbiologista Natalia Pasternak sintetiza assim a história da saúde nos últimos quatro anos: “O governo começou com um ministro da área [Luiz Henrique Mandetta] que montou uma equipe técnica. A covid derrubou tudo. Naquele momento começou a politização, começou a degringolar. Troca de ministros, cloroquina, falas absurdas. Todas as escolhas passaram a ser orientadas por cálculo político”.

Pesquisador que também atua nos EUA, o epidemiologista Pedro Hallal destaca os ineditismos do período: “Foi a primeira vez na história que o Ministério da Saúde adotou postura anticiência. A primeira em que o Estado trabalhou contra vacina. E a primeira em que as autoridades adotaram o conflito como estratégia de gestão”.

Por discordar do viés científico, Bolsonaro demitiu Mandetta no segundo mês da pandemia e viu o sucessor, Nelson Teich, ficar menos de um mês no cargo. Ele deu eco ao discurso de que a covid era branda, propagandeou remédios sem eficácia e apostou na imunidade de rebanho – a ideia de que quanto mais gente contaminada, mais rapidamente a questão se resolveria.

O mau desempenho do país no combate à covid é a face mais visível da politização e colaborou para a impopularidade de Bolsonaro, que reverteu em sua derrota eleitoral. Com menos de 3% da população, o país tem 11% dos óbitos. Mas as consequências vão além. Pesquisadores, ex-ministros e entidades destacam que o período é marcado por queda na vacinação em geral, aumento da mortalidade materna, volta de doenças do passado, desabastecimento, cortes orçamentários, falta de integração com Estados e municípios e apagão de dados.

Coordenador do grupo de saúde da equipe de transição, o ex-ministro Arthur Chioro classifica como “verdadeiro caos” a situação encontrada. “O governo não sabe quantas vacinas tem no estoque, quanto vai mandar aos Estados, quantas estão na validade”, diz. “Faltam remédios para Aids, hepatite e houve corte de despesas discricionárias. Há uma desmontagem generalizada de programas, como o de saúde bucal, saúde indígena e saúde da família.”

Médica da Fiocruz e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Lucia Souto reforça: “Assistência farmacêutica está desorganizada e sem remédios. Mortalidade materna aumentou. Aumentou o número de internações de bebês por desnutrição. Há desmonte do Programa Nacional de Imunizações. Faltam dados, não tem previsão para 2023 e há o risco da reintrodução da poliomielite.”

O atraso na compra de imunizantes contra a covid foi acompanhado pela difusão da ideia de que vacinas podem fazer mal. Bolsonaro difamou a CoronaVac, chamando-a de “vacina da China”, comemorou atrasos na fase de testes, se esquivou de ser vacinado, debochou dizendo que alguém poderia virar jacaré, difundiu a “fake News” que associava vacinação à Aids.

Mesmo o atual ministro, Marcelo Queiroga, médico de formação e o quarto no posto, deu sua contribuição. Falando sobre a “liberdade individual” de não tomar a vacina, disse que “às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade”.

A Organização Pan-Americana de Saúde alertou sobre o “risco muito alto” de reintrodução poliomielite no país. 2013 foi o último ano com 100% de cobertura vacinal. Desde 2016, a taxa está abaixo de 90%. Em 2021, caiu para 70,9%. Agora, 66,7%. A tríplice viral D1, contra sarampo, caxumba e rubéola, teve cobertura total pela última vez em 2014. Caiu para 74,7% em 2021, 71,8% neste ano. A BCG, para proteger da tuberculose, regrediu de 100% (2015) para 74,5%.

Na atenção primária também há retrocesso na mortalidade materna. Em uma década, 2020 registrou recorde de mortes de mulheres por complicações na gravidez ou parto: 74,7 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos. Há dez anos, eram 59,3. Em boletim, o próprio ministério ressalta a importância de ações para melhorar o pré-natal e cobra investimentos.

Houve aumento da internação de bebês por desnutrição. A Fiocruz mostrou que o governo Bolsonaro registrou, em 2021, o pior índice em 13 anos. Em média, oito crianças com menos de um ano foram hospitalizadas por desnutrição a cada dia (113 internações para cada 100 mil nascidos vivos). Um novo recorde deve ser batido, já que, até agosto, a rede pública registrava aumento de 7% na taxa.

A desnutrição contribui para o agravamento de outros quadros que levaram crianças a óbito. Entre 2018 e 2020, mais de 50 mil bebês morreram de causas evitáveis, como diarreia e pneumonia, conforme identificado pela Fiocruz. Se o problema não for tratado, diz Lucia Souto, o próximo sinal será o aumento da mortalidade infantil.

O ministério alega que tem dois programas para prevenir carência de micronutrientes e que repassou R$ 345 milhões aos municípios em 2021 para ações de nutrição.

Outro problema ressaltado de forma quase unânime é o apagão de dados. Faltam informações sobre quantos brasileiros tomaram imunizantes por município, estoques e validade de medicamentos e vacinas. “No caso das vacinas, não sabemos se o problema está na alimentação de dados, na falta de campanhas ou na falta de vacinas mesmo”, diz Pasternak. Lucia Souto vai além: “O apagão de dados é um projeto político”.

A equipe de transição estima, com base em dados coletados pelo Tribunal de Contas da União, que o país deve perder R$ 2 bilhões gastos em vacinas contra covid a vencer no início de 2023. Em julho, o TCU determinou a divulgação de dados de medicamentos e vacinas em estoque sob sigilo. Descobriu-se que 22 milhões de itens, entre ampolas e remédios, haviam perdido a validade, prejuízo de R$ 243 milhões. No rol estavam 344 mil doses de vacina contra a covid. O ministério disse na ocasião que os centros de distribuição são controlados e fiscalizados para mitigar risco de perdas.

A falta de transparência ficou evidente já no terceiro mês da pandemia. Diante da ascensão de óbitos, o governo parou de divulgar dados acumulados. Em resposta, veículos de comunicação formaram um consórcio para coletar números nos governos estaduais, totalizar e fazer a divulgação diária.

Em auditoria, o TCU ressaltou a precariedade dos dados oficiais. Sem coleta organizada pelo ministério, não é possível saber o tamanho da fila para exames, procedimentos e cirurgias. Há estimativa de ao menos 11,6 milhões de cirurgias represadas na pandemia, segundo dados coletados pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass).

Outro reflexo da pandemia é o atraso no diagnóstico de doenças. Sem exames preventivos, o paciente descobre o problema em um estágio mais avançado, quando o tratamento é mais difícil. Segundo o Conass, cerca de um milhão de mamografias deixaram de ser feitas. A equipe de transição estuda medidas como mutirões, teleatendimento e contratação de serviço em hospitais filantrópicos e privados. Mas isso esbarra na questão orçamentária.

Bolsonaro cortou R$ 22,7 bilhões do setor na proposta de diretrizes orçamentárias para 2023. O Conselho Nacional de Saúde (CNS), que tem como função fiscalizar ações do setor, divulgou uma “carta-denúncia” a respeito e uma moção de repúdio ao governo.

Entre 2018 e 2022, segundo o CNS, houve perda de R$ 36,9 bilhões na saúde por conta do teto de gastos. Conselheiro do órgão, Getúlio Vargas Jr. ressalta que a redução afeta o Farmácia Popular, a atenção primária, exames e consultas, programas de prevenção, controle e tratamento de Aids, hepatites e tuberculose. O Farmácia Popular, que distribui medicamentos, foi reduzido 59% na proposta para 2023. Isso tolhe o acesso a medicamentos para diabetes, hipertensão e asma.

Ex-integrante do ministério na gestão Mandetta, o médico João Gabbardo aponta o desmonte da estrutura tripartite da pasta, com falta de diálogo com Estados e municípios. “O governo não consegue impor políticas centralizadas”, diz.

Gabbardo atuou como número dois no início da gestão. Ele afirma que, até a pandemia, o ministério tinha “total liberdade para implementar políticas”. Isso mudou com a chegada da covid: “No início da pandemia, o país não tinha equipamento de proteção individual, máscara, não tinha profissional suficiente nem estrutura para o atendimento de uma alta demanda. Por isso defendemos o isolamento social, para ganhar tempo. Mas o presidente não concordou”. Mandetta reforça: “A condução até a pandemia era técnica. Depois houve uma intervenção militar”.

Os resultados da saúde comprometeram a reeleição de Bolsonaro, mas outros se beneficiaram. Pazuello, por exemplo, trocou a farda pelo PL-RJ, de Valdemar Costa Neto, e foi eleito deputado federal.

O Valor procurou o ministério para comentar. A assessoria de imprensa pediu que perguntas fossem enviadas por escrito. O e-mail enviado com os questionamentos não foi respondido.

Valor Econômico