Bolsonaro insuflou o caos durante 2 anos

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Estudiosa da extrema direita, a antropóloga Isabela Kalil defende, em entrevista ao GLOBO, que os bolsonaristas responsáveis por atos de terrorismo em prédios dos três Poderes no último domingo agem, em parte, de forma independente do presidente Jair Bolsonaro (PL), que está nos Estados Unidos e tem adotado uma estratégia de comunicação ambígua nas redes sociais. Não é que o atual presidente não tenha responsabilidade nos atos ou tenha perdido relevância para sua base, pelo contrário. O que a professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) aponta é que seus apoiadores não precisam mais de seu comando.

— Quando falo que Bolsonaro perde um pouco o controle da sua base não significa que, se ele pedir, as pessoas não vão para um ato de radicalidade. Elas vão. Significa que, se ele disser para as pessoas recuarem, elas podem não recuar — explica.

Kalil destaca ainda que a capacidade de articulação bolsonarista e as consequências de seus atos foram subestimadas pela sociedade brasileira. Outro alerta é que, em meio à transnacionalização da extrema direita, há dificuldade de responsabilizar atores que estão envolvidos na tentativa frustrada de golpe e estão fora do país.

Sua pesquisa aponta para um processo de radicalização da extrema direita no Brasil. Como ele foi construído?

A extrema direita existia antes de Bolsonaro. Havia diferentes grupos que estavam separados e não canalizavam uma agenda. Eles foram se unindo em torno da figura do ex-presidente, o que inclui depois o contexto digital, uma geração bem mais jovem que se mobiliza a partir de fóruns on-line. Bolsonaro deu essa cola. Não houve exatamente um crescente linear para esse apelo para a violência. No período das eleições de 2018, há um determinado momento em que Bolsonaro performa uma figura relativamente moderada, chega a mudar a sua posição em relação às mulheres, passa a defender, por exemplo, o Bolsa Família. Em 2019, Bolsonaro vai ficando cada vez mais institucional, e esses grupos mais radicais, inclusive, mostram descontentamento. Qual é a grande virada? A pandemia. Bolsonaro tentou explorar a pandemia como uma oportunidade política. No 7 de setembro de 2021, ele chegou a falar que não ia cumprir decisão judicial. A partir do início de 2022, há uma crescente. Esta é a primeira vez que a gente tem consequências e que a gente tem claramente a invasão dos prédios públicos, mas a gente teve exercícios anteriores que eram de tentativas. Tivemos as motociatas, os 300 do Brasil e um grupo que chegou a marchar com intenção de invadir o Congresso e foi frustrado. Isso já vem sendo anunciado há quase três anos.

É possível traçar um perfil desses terroristas?

Nossas pesquisas mostram diferenças entre os apoiadores, mas existe, sim, o perfil do patriota. É uma figura mais velha, alguém que viveu o período da transição democrática. Isso é visível quando a gente olha para as manifestações nas portas dos quartéis e mesmo na invasão. O patriota é essa figura que, de uma certa maneira, se coloca com a radicalidade e a violência à disposição dessa agenda. É diferente da figura do “cidadão de bem”, que estava muito pautado por uma agenda anticorrupção, o lavajatismo, e que dificilmente vai deixar de trabalhar para ficar na frente de um quartel, embora possa ter posições igualmente radicalizadas. O patriota tem uma inspiração militar, ele marcha, tem uma performance inspirada por uma lógica bélica. O explica sair de casa, abandonar família e estar há semanas em acampamento? Essas pessoas partem do pressuposto de que estão numa espécie de guerra, que foram convocadas e selecionadas para salvar o país. Na cabeça delas, estão fazendo isso porque é a melhor coisa para o país.

A gravidade das ações da extrema direita, dos acampamentos e até dos ataques aos prédios dos três Poderes foi subestimada?

Sim. Há responsabilização pela gestão da segurança por parte do governo do Distrito Federal, mas há também um ponto que é o fato de se subestimar a capacidade desses grupos e as consequências dos atos que podem eventualmente fazer. Como boa parte desse percurso é entendida dentro do que a gente tem nomeado de bolsonarismo e que está muito organizada a partir de uma agenda que foi colocada pelo Bolsonaro, que é a da fraude nas eleições, uma parte da sociedade criou uma amálgama como se os apoiadores e a figura de Bolsonaro fossem a mesma coisa e que bastaria Bolsonaro sair da cena política para os riscos serem minimizados. Essa base é diretamente filiada à figura de Bolsonaro, mas em parte também é independente em termos de ação. O que não significa eximir a responsabilidade de Bolsonaro. Bolsonaro passou quatro anos pedindo aos apoiadores que fizessem o que eles fizeram. Se ele ficou quatro anos fazendo isso, Bolsonaro não precisa dar novo comando. Já está dado. Bolsonaro minimizar sua atuação na política não significa que a extrema direita sai da cena pública.

Qual o futuro de Bolsonaro? Há espaço para novas lideranças?

Uma nova liderança da extrema direita demoraria anos, e foi o caso do próprio Jair Bolsonaro. É um processo complexo. Hoje a gente tem diferentes disputas dentro do bolsonarismo para que outras lideranças tentem superar o Bolsonaro, mas no horizonte não há uma liderança surgindo com a capacidade de fazer isso. O que é mais evidente é a possibilidade de que seus filhos possam ocupar esse lugar. Bolsonaro continua sendo relevante. Quando falo que Bolsonaro perde um pouco o controle da sua base não significa que, se ele pedir, as pessoas não vão para um ato de radicalidade. Elas vão. Significa que, se ele disser para as pessoas recuarem, elas podem não recuar.

A articulação internacional é um desafio adicional para autoridades lidarem com esses grupos terroristas?

O que acaba acontecendo é que você tem atores que estão envolvidos nisso e que não estão no Brasil, não são mais de jurisdição da Justiça brasileira. A questão transnacional dificulta, inclusive, a responsabilização desses atores. É o caso do Bolsonaro, que está fora do Brasil e tem uma relevância para esses grupos. E tem também o fato de que essa questão transnacional vai criando um modelo que vai sendo replicado em diferentes contextos. É mais complicado do que dizer que os brasileiros copiaram a invasão do Capitólio. Para essa mobilização, algumas hashtags foram compartilhadas, mas entre elas tem uma que é “Brazilian Spring” (Primavera Brasileira, em inglês). Quem levantou essa hashtag foi o Steve Bannon. Não é como se o Bannon estivesse mobilizando uma parte da extrema direita nos Estados Unidos e o Brasil estivesse copiando. Não. São lideranças que têm trânsito em diferentes países. Isso torna as coisas mais difíceis.

O Globo