Caos no DF permitirá reformar polícias

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Foto: Agência Brasil

Para atacar a bolsonarização das polícias militares, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisa ir contra o histórico das gestões petistas e não deixar a questão da disciplina das forças de segurança apenas a cargo dos governadores. A avaliação é do presidente-executivo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSP), Renato Sérgio de Lima. Para ele, não basta apenas realizar a troca de comando das corporações e isolar elementos mais radicais.

Em sua avaliação, os eventos de domingo criam uma oportunidade para reformar os códigos e normas que disciplinam a atuação das forças de segurança. Questões como a regulação do uso das redes sociais e a quarentena dos agentes que pretendem ingressar na política podem ser resolvidas dentro desse escopo, que tem caráter infraconstitucional, diz.

A contaminação política e ideológica das polícias não é recente, está conectado à falta de reformas”

Lima avalia que, diferentemente do que ocorreu em outros momentos, como no 7 de setembro de 2021, desta vez os policiais se sentiram à vontade porque seus líderes permitiram que isso pudesse ocorrer. No caso do Distrito Federal, o comando político é do governador e o comando operacional é o chefe da polícia militar da capital, que é subordinado diretamente ao governador, sem passar pelo secretário de Segurança Anderson Torres. Nesse sentido, ele avalia como correto o afastamento e o pedido de impeachment de Ibaneis Rocha (MDB).

Confira os principais trechos da entrevista:

Valor: Ao comentar os eventos de domingo, o ministro da Justiça, Flávio Dino, chamou a atenção para a penetração de “ideologias exóticas e inaceitáveis” na forças de segurança. Era possível que o novo governo, oficializado há apenas uma semana, pudesse evitar atos de insubordinação?

Renato Sérgio de Lima: Quando olhamos o processo de radicalização das polícias militares, a gente vê que os mecanismos de governança, as salvaguardas institucionais, sempre funcionaram para evitar rupturas, como no episódio do 7 de Setembro de 2021 e de 2022. Os comandos de PMs estavam cientes da irresponsabilidade de deixar as tropas agirem da forma que bem entendessem, até porque pegaria mal para os próprios comandantes. O que aconteceu domingo, quando a gente viu policiais tirando foto, comprando coco e assistindo aqueles atos, ocorreu porque os policiais se sentiram à vontade. O comando permitiu aquilo, e quando falo de comando, é o comando político – no caso, o governador do Distrito Federal -, e o comando operacional, que é o chefe da PMDF. Este, vale a pena ressaltar, não é subordinado ao secretário de Segurança, Anderson Torres, mas a Ibaneis diretamente. O que a gente viu, nesse sentido, foi que o processo de bolsonarização passou a contaminar não apenas os escalões mais baixos, mas também os comandantes, que ignoraram os apelos do Ministério da Justiça. E isso justifica afastamento e pedido de impeachment de Ibaneis.

Valor: O senhor vê risco, no curto prazo, de novos episódios de insubordinação?

Renato Sérgio: O FBSP realizou uma pesquisa que mostra que 42% dos policiais militares interagem em ambientes radicalizados, que defendem essas teses que circulam nas redes sociais. E quem estuda a área sabe que existem crises recorrentes por questões como salários. O motim de 2019 da PM do Ceará, por exemplo, só não avançou porque a PEC da Pandemia tirou dos governadores poder de conceder reajuste. A questão é: o governo Lula vai enfrentar isso? Não se pode apenas empurrar o problema para os governadores. O ministro da Justiça e o Congresso precisam reformar normas que regem as corporações para evitar novos episódios como o de domingo.

Valor: Como assim?

Renato Sérgio: A contaminação política e ideológica das polícias não é recente, está muito conectada à falta de reformas mais concretas nos últimos 30 anos. O maior marco disso é Decreto 667/1969, que cria as PMs no formato atual. O que Bolsonaro fez, sem mexer em absolutamente nada nessa estrutura, foi conquistar os corações e mentes de policiais com um discurso moral, de quem está do mesmo lado. Isso criou uma amálgama entre a visão de mundo conservadora – que é uma constante em várias forças policiais do mundo – com posições autoritárias. Em nome da guerra ao crime, à droga, vai se justificando uma postura de morticínio, de exclusão de licitude, de combate a um inimigo.

Valor: O que essa reforma poderia trazer, por exemplo?

Renato Sérgio: Ela poderia regular a participação de policiais nas redes sociais, criar mecanismos de responsabilização, regrar a participação na política, trazer algum princípio de quarentena. Hoje, existe caso de policial que sai do comando, vira candidato, perde e volta para a corporação. É importante também enquadrar bem a atuação de cada força. São coisas simples que, à falta de definição, acaba ficando ao critério de cada corporação. Outro exemplo: durante o segundo turno das eleições, o ministro Alexandre de Moraes ordenou que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) suspendesse a operação contra os ônibus de eleitores. A PRF, por sua vez, argumentou apenas que estava cumprindo seu papel e Moraes ficou sem base legal para questionar. São alterações infraconstitucionais. Inclusive, a pedido da coordenação de campanha do PT, o FBSP entregou um memorando do que seria um projeto de lei nesse sentido. Ocorre que o Ministério da Justiça, posteriormente, optou por não tratar do tema, mesmo com a legislação sendo federal.

Valor: Acredita que haverá mais espaço para um debate desse tipo a partir de agora?

Renato Sérgio: Em termos políticos, acredito que abriu-se janela de oportunidade para enfrentar essa agenda, que não precisa ser radical. É só reorganizar a forma de trabalho das policias, reforçar a autoridade dos governadores, repensando o papel de articulação do governo federal. Mas acho pouco provável que um governo de esquerda encampará isso.

Valor: O senhor defendeu, desde o primeiro minuto, uma intervenção federal ao invés da decretação de uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em Brasília. Por que?

Renato Sérgio: A GLO, é o instrumento que acabou reforçando o papel dos militares na segurança pública brasileira. Só que é preciso afastá-los desse tema, deixá-los com suas obrigações constitucionais. Além disso, em um momento como esse, uma operação do tipo pode causar a impressão de que as Forças Armadas estariam “observando” o artigo 142 da Constituição [que os golpistas acreditam atribuir um poder moderador a elas].

Valor: A PRF foi politizada no governo Bolsonaro. Acredita que a situação está contornada?

Renato Sérgio: Não. Qualquer mudança passa pelos processos de formação, capacitação, transparência. A escolha do comando é um passo fundamental, mas ainda é cedo para dizer que é suficiente.

Valor: Os eventos desde domingo também chamaram a atenção para o surgimento do terrorismo doméstico. A polícia está bem estruturada para enfrentar esse tema?

Renato Sérgio: A grande maioria das 86 polícias no Brasil, entre militares, civis, rodoviárias e federal, têm imenso preparo técnico e tecnológico para fazer frente à essa questão. A PM de São Paulo é exemplo para o mundo no caso do uso de câmeras no uniforme policial. O problema não é de preparo, mas de diretriz. Não podemos ter sistema de vigilância avançado, mas com viés de raça, ou uma arapongagem que não consegue antever uma invasão dos três Poderes.

Valor: Qual sua avaliação sobre os primeiros dias do Ministro da Justiça e Segurança Pública?

Renato Sérgio: Acredito que Dino começou muito bem com o decreto sobre armas. Foi um sinal que precisava ser dado e na direção correta. Ele avançou em promessas importantes da campanha, como o racismo, ao anunciar vários negros em sua equipe. Em relação a domingo, acredito que faltou um plano de contingência. Algumas coisas levam tempo: o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), por exemplo, precisa ser completamente desbolsonarizado, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ainda está sem comando. Só que, mesmo sabendo da ameaça potencial, deixou-se o tempo da burocracia sobressair.

Valor Econômico