Leitura torta da Bíblia fez evangélicos apoiarem violência

Destaque, Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Wallace Martins/Futura Press/Estadão Conteúdo

No capítulo 6, versículos de 10 a 12 de sua carta aos Efésios, o apóstolo Paulo escreve: “Fortaleçam-se no Senhor e no seu forte poder. Vistam toda a armadura de Deus para poderem ficar firmes contra ciladas do Diabo, pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais”.

Segundo o teólogo e jornalista Ranieri Costa, mestrando em linguagens e mídia da PUC-Campinas, análises equivocadas de trechos como este servem hoje como combustível para que parte dos radicais marche convicta de ser protagonista não de um atentado contra a democracia, mas de uma guerra espiritual contra o mal.

“Quando Paulo fala isso aos Efésios, o contexto é outro. A armadura de Deus é espiritual, e não a de uma guerra física. Não é, em hipótese alguma, uma comparação entre dois tipos de guerra, mas uma negação absoluta da guerra terrena. Um pouco adiante ele mesmo diz que uma das armaduras desta guerra espiritual é a prontidão do Evangelho da paz. E tudo o que não houve ali em Brasília foi paz”, afirma.

Para o especialista, essa confusão decorre justamente de recortes intencionais da leitura bíblica, que desconsideram passagens importantes e suprimem o contexto em que foram escritos.

“Muitas lideranças aplicam esses textos para o que está acontecendo no Brasil. Há um envolvimento direto. Para elas, a guerra de que falava Paulo está atualizada como uma guerra contra forças espirituais do mal representadas pelo comunismo, o marxismo, o esquerdismo, Lula, o PT e o STF. E quando tudo isso é transferido para o campo espiritual, fica difícil debater. O líder religioso — em qualquer religião, mas o evangélico especialmente — tem uma grande influência na vida de outras pessoas. Muitos usam essa influência para manipular. E, para quem ouve, quem está falando é a voz de Deus. Aquele pastor foi ungido por Deus e contestá-lo é contestar o próprio Deus. Aos que têm fé, em hipótese alguma se rompe ou se desobedece uma ordem divina.”

Por essa razão, de acordo com o teólogo, o vínculo religioso do bolsonarismo é o mais difícil de ser quebrado. “A fidelidade irrestrita é parte da fidelidade religiosa. Mas essa fidelidade trocou de Messias. Esse é o grande erro da história.”

Os elementos messiânicos ficaram escancarados em diversos momentos antes, durante e depois da invasão. “As músicas que as pessoas cantavam tinham essa característica. As orações em volta dos lugares, com muita gente dizendo que aquele lugar pertencia a Jesus, também. São marcas de que aquelas pessoas acreditavam estar imbuídas de um compromisso espiritual.”

Em vídeos divulgados nas redes, é possível observar invasores dedicando o ataque à “glória do Senhor”. A volta de Jair Bolsonaro (PL) ao poder, segundo um deles, era parte dessa missão.

Ainda durante a invasão, muitos radicais demonstravam uma espécie de vibração diante da ação da polícia, das ameaças de prisão e dos efeitos de gases lacrimogêneos.

Ranieri Costa explica que, na religião cristã, existe uma expectativa, transmitida pelo próprio Cristo, de que as pessoas seriam perseguidas por causa do seu nome. “Quem se compromete com Cristo assume esse risco de ser perseguido. Há passagens bíblicas em que os apóstolos chegam a comemorar o fato de estarem presos. Eles sabiam que aquela prisão se dava pelo compromisso assumido com Cristo.”

Segundo ele, porém, até nisso os bolsonaristas radicais “embaralharam as coisas”. “Dava para ver entre eles uma pseudoalegria na repressão. Eles entendem a repressão pelos crimes cometidos ali como uma perseguição por causa de Cristo e da mensagem bíblica. Mas o ‘messias’ ali era outro. Foi substituído. Elas estão prostradas por alguém que não é o Cristo.”

Tudo isso, afirma o estudioso, dá um contorno religioso, apocalíptico e profético na ação dos radicais.

E, entre tantos elementos messiânicos que reuniram essa facção religiosa a outros grupos sociais e econômicos ligados ao bolsonarismo, a criação de um “mártir” da causa ainda é um processo em aberto.

Dias atrás, o pastor Mauro Sérgio Aiello, da Igreja Presbiteriana de Mogi das Cruzes, atacou o ministro da Justiça, Flávio Dino, a lisura do processo eleitoral e falou claramente em pegar em armas como forma de “defesa”.

Era uma clara incitação ao crime, destas que têm baseado pedidos de prisão contra inúmeros atores do golpismo bolsonarista. A coisa muda de figura, porém, quando a mesma mensagem é emitida por um líder religioso.

Afinal, como lembra Ranieri, os radicais estão realmente convencidos de que o comunismo será instalado no Brasil através do governo Lula. E que as igrejas serão fechadas e os pastores, presos.

“Se isso [uma eventual prisão de alguma liderança religiosa] acontecer, a histeria será ainda mais insana”, prevê o teólogo, lembrando da fake news espalhada durante a campanha a respeito de uma suposta perseguição a cristãos.

Ao endossar, estimular ou participar de crimes como os cometidos no domingo, a profecia autorrealizável parece ser tudo o que desejam os arquitetos espirituais do terrorismo tupiniquim.

Uol