Não querer “cutucar a onça” criou onipotência militar

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Foto: Leo Pinheiro/Valor

Conhecedor dos bastidores e do pensamento da caserna, o historiador Francisco Teixeira, da UFRJ, avalia que é preciso bater de frente com militares que venham a interpretar de forma equivocada suas funções na República. Não é possível aceitar a ideia de tutela militar, que faz parte da mentalidade das Forças Armadas ao longo, diz. “A ideia de que são os únicos puros, impolutos e patriotas do país não pode continuar.” Teixeira critica a postura do ministro da Defesa, José Múcio, que estaria agindo como um “embaixador dos militares” no governo Lula. Procurado, Múcio não retornou até o fechamento desta edição. Abaixo, os principais trechos da entrevista ao Valor.

Valor: Como interpreta a omissão do Batalhão da Guarda Presidencial no 8 de janeiro?

“Militar é funcionário público que cumpre ordens, não representa nada, ninguém. Isso que tem que ser estabelecido”

Francisco Teixeira: Não foi só do Batalhão da Guarda. [Marco Edson] Gonçalves Dias (comandante do Gabinete de Segurança Institucional do governo Lula) dispensou o corpo de policiais do GSI e não convocou a guarda para ficar em alerta. Em primeiro lugar, acho que porque estava tendo uma definição de que os movimentos iriam se esvair, que era a visão do Múcio. E dentro do GSI havia figuras notoriamente bolsonaristas, que o Gonçalves Dias não fez nada para tirar. Foi um erro de inteligência brutal, tão grande que claramente justificaria demissão. A “festa da Selma” era uma senha que todo mundo sabia, menos o GSI. Havia duas portas de entrada: uma era o governo do DF, com a atuação do Anderson Torres, a outra, federal.

Valor: Considera que a pouca atenção dada à Defesa na transição foi decisiva para o caos?

Teixeira: Não acho que foi pouca atenção, foi intencional. Se fosse formado o comitê de Defesa e assuntos militares, a massa crítica do Brasil, das universidades, iria questionar o diagnóstico de que impera o legalismo nas Forças Armadas e de que o bolsonarismo estava em descenso. Dias e Múcio já tinham diagnóstico prévio e bloquearam o debate, não chamaram pesquisadores. Com essa política de não discutir, de diagnóstico prévio e errado sobre as Forças Armadas, caminharam inevitavelmente para o que aconteceu no dia 8.

Valor: Como avalia a nomeação de Múcio para a Defesa?

Teixeira: É toda equivocada. O que se vê é que o ministro Múcio está se comportando como embaixador dos militares no governo Lula, não como ministro. Quando anuncia que vai promover almoços de políticos com militares. Isso é absurdo. Vai convidar um ministro para comer maionese de batata e ouvir o que os militares pensam? Isso é manter a politização e a autonomia dos militares de exercer tutela sobre a vida política.

Valor: Como despolitizar as Forças Armadas?

Teixeira: São 100 anos do tenentismo. Os tenentes diziam que eram mais competentes para comandar o Brasil e que a elite política era corrupta e inoperante. Continuamos com essa ideia de tutela que vem desde a proclamação da República, quando militares fundam a República e se acham os donos dela, que podem exercer tutela. Tem uma coisa que militar diz e é verdade: não se bate continência para baixo. O que está acontecendo com figuras centrais é que estão batendo continência para militares e esquecendo que são os representantes eleitos pelo povo. Militar é funcionário público que cumpre ordens, não representa nada, ninguém. Isso tem que ser estabelecido. E é fácil: é só mandar para a reserva e nomear generais mais jovens. A ideia de “poder militar” é a fonte de todos os enganos.

Valor: Há sempre muito medo de enfrentar os militares?

Teixeira: O tempo todo. Inclusive, o governo Lula teve uma atitude muito simpática aos militares, criou um gigantesco programa de equipamentos militares, incluindo os submarinos, e colocou o Exército brasileiro no mundo: Haiti, Congo, Nepal. O que eles diziam? “Estão querendo nos comprar.”

Valor: Lula dizer que os militares não são um poder moderador soa afrontoso para eles? É perigoso?

Teixeira: Acho que tem que bater de frente, esperar quem vai desmentir o presidente e, se desmentir, passar para a reserva. Simples. Quando Emmanuel Macron assumiu na França, o comandante das Forças disse que seria uma tragédia porque era alguém sem experiência militar. Em 24 horas foi para a reserva. É assim que a República funciona. A ideia de que não podemos cutucar a onça com vara curta implica em aceitar tutela. O grande lucro do que aconteceu é que o ministro Flávio Dino acertou em não usar uma GLO, que traria um general para o comando de Brasília e o colocaria face a face com o presidente. Dino acertou ao colocar um civil. Há uma novidade republicana fundamental: não recorremos às botas e às baionetas para proteger a República. É o trabalho correto para superar o trauma e o vício da tutela militar.

Valor: Nomeação do Múcio sinalizava que não seriam feitas reformas na Defesa. Depois de tudo, é preciso aumentar o controle civil?

Teixeira: Algo imediato é prosseguir na segunda porta de entrada da “festa da Selma”. Da mesma forma que estão sendo criminalizadas as pessoas do DF, as do Exército também têm que ser. Se isso não acontecer, é porque se tremeu na frente do Exército. Acusar o Ibaneis e o Torres é fácil. E o elemento central, que foi o Planalto? Essa é a primeira briga. A médio e longo prazos, é preciso intervir na formação dos oficiais brasileiros. Não é possível mais que as escolas e academias continuem formando oficiais com essa visão histórica e sociológica do Brasil. A ideia de que eles são os únicos puros, impolutos e patriotas do país não pode continuar. A ideia de que o exército criou a Nação brasileira é um absurdo. É preciso resolver os currículos, é uma questão de cultura militar.

Valor: Por que a resistência a Lula é tão grande na caserna, mesmo com todos os projetos militares apoiados pelos governos dele?

Teixeira: Recentemente, a Lava-Jato teve papel fundamental. Sergio Moro ganhou todas as medalhas, visitou todos os comandos militares, deu aulas magnas em todas as academias. O “morismo” é central, e o general Villas Bôas teve responsabilidade imensa nisso, levou Moro para dentro das Forças. Os militares não tratam Lula como inocente, usam a expressão “desculpado” e avaliam que houve manipulação do STF. Fazem acusações de que o tribunal manipulou a anulação da condenação e, de outro lado, que Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Luis Roberto Barroso manipularam

Valor Econômico