Povo ignora ameaças e lota posse de Lula

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Foto: Letícia Mouhamad/CB/D.A Press

Quatro dias antes da posse, uma cartilha divulgada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) sinalizava um clima de apreensão para a chegada do novo presidente, reforçado por episódios recentes de ameaça de bomba e queima de carros na capital federal. “É mais seguro reunir um grupo de amigos ou misture-se à multidão”, “Não responda a provocações verbais e físicas”, “Em caso de ameaça, procure gravar o máximo possível de detalhes das pessoas, dos locais onde você estava”, indicava o texto com dicas de segurança.

Logo na manhã do primeiro dia do ano, foi ficando claro que o temor não tomaria conta da Esplanada. Do Distrito Federal e de outros cantos do país, dezenas de milhares de pessoas foram ocupando o vasto gramado que divide os Ministérios aparentemente despreocupadas com o clima de polarização que domina o país há meses. Muitas delas usavam roupas e bandeiras com as cores do partido do presidente eleito. Uma multidão sem medo de ser petista.

E também criativa ao levar à posse temas recorrentes do embate político. Dagoberto Santos, 25 anos, veio do Rio Grande do Sul para acompanhar o evento vestido de Dilma Rousseff, que sofreu um processo de impeachment em 2016. Questionado sobre o cosplay, ele disse ao Correio que era uma forma de reparação e comemoração. “A ideia surgiu no carnaval de 2017, logo após o golpe que a Dilma sofreu. A fantasia veio como uma forma de protesto. Hoje, ela vem em forma de comemoração, como uma reparação histórica, porque, hoje, é uma alegria estar aqui na posse”, disse o jovem que se dividia entre a comemoração da posse e poses para fotos.

Ao lado da tenda da loja oficial do PT e de um boneco inflável gigante do presidente, muitas pessoas também tentavam fazer um registro com Susy Keith, vestida de “Estrelinha do Lula” — uma fantasia que só a deixava com os braços, as pernas e o rosto de fora. Logo adiante, havia o fantasma do PT, também praticamente todo coberto.

Outro alvo dos cliques era a escultura de uma mão carregada por Raquel Lima, 69 anos, filiada ao Partido dos Trabalhadores desde os anos 80. A peça foi usada por Raquel nas duas vezes anteriores em que Lula assumiu a Presidência. Para ela, a cerimônia de ontem tinha um significado especial. “Vamos resgatar o que o Brasil perdeu nesse último governo. É a essa união e esse amor fraterno que devemos dar o máximo valor”, disse a professora de teatro.

Havia a expectativa de que os presentes fossem submetidos a uma revista rigorosa antes de chegar à Esplanada. Mas o procedimento ocorreu principalmente nas imediações da Praça dos Três Poderes. A Polícia Militar do Distrito Federal preparou o esquema de segurança próximo à Rodoviária, mas o quantitativo de apoiadores e cidadãos se tornou inviável para a revista e a passagem pelo detector de metais. Por volta das 10h, as vias que cortam o Eixo Monumental estavam liberadas para livre circulação de pedestres.

A presença de muitas crianças, idosos, famílias e pessoas com dificuldade de locomoção sinalizou que, mesmo fugindo do protocolo de segurança planejado, havia uma forte sensação de segurança entre os presentes. Mesmo com a perna engessada, o professor Matheus Barbosa, 24 anos, fez questão de participar do “momento único”.

Se não fosse a política de cotas raciais nas universidades públicas, conta, ele não teria a oportunidade de cursar a graduação em geografia, tornando-se o primeiro da família a ingressar em uma federal. “Foi um divisor de águas na minha vida. Me trouxe perspectiva profissional e maior senso crítico”, disse, ao lado da mãe, Rosemira Silva, que testemunhou as posses passadas do presidente. “Achei que não viveria esse momento de novo”, acrescentou a fiel eleitora.

Usando bengala, em decorrência de uma paralisia, o eletricista Raimundo Sousa, 68, também fez questão de ir à Esplanada. “Viria de toda forma. Lula é a minha maior fonte de inspiração”, conta. Raimundo, que ingressou no movimento sindicalista na Bahia há cerca de quatro décadas, acredita que o petista não conseguirá fazer tudo o que deseja, mas certamente tentará “tocar o barco”.

A opinião é compartilhada por Gabriel Dourado, 22 anos. “Vai ser um primeiro ano difícil de governo porque ele vai ter que reconstruir muita coisa, a economia não está boa”, avalia o estudante, que gostou do discurso direcionado à multidão presente na Esplanada. “Foi muito bom porque Lula falou muito sobre desigualdade, que é uma bandeira muito forte dele.”

No discurso, Lula também fez críticas ao governo Bolsonaro, que deixa o mandato sem recursos em diversas áreas, segundo o sucessor. “Quem está pagando a conta desse apagão é o povo brasileiro”, afirmou o presidente. O povo reagiu à fala gritando “Sem anistia, sem anistia”. Antes, em sua fala ao Congresso Nacional, ao assinar o termo de posse, o petista disse que os crimes cometidos durante a pandemia serão punidos. “As responsabilidades por esse genocídio hão de ser apuradas e não devem ficar impunes.”

O desejo de Maristela dos Santos, 63, é que, com a volta de Lula, acabe uma fase de “mentes paradas em 1964”. “Estou aqui nesse fato histórico, importantíssimo para o nosso país, porque eu estava no movimento das Diretas Já, acompanhei tudo em Brasília desde a Nova República. É uma reintegração de posse do território da capital federal”, diz. “A organização ou qualquer entrave que pudesse acontecer é o que menos importa, o que importa é chegar aqui e ver esse fato. É uma nova inauguração de Brasília.”

Correio Braziliense