Biden tentará convencer Lula a tomar partido na guerra da Ucrânia

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Foto: Carl de Souza e Mandel Ngan/AFP

O presidente dos EUA, Joe Biden, tentará convencer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a fazer parte da pressão do Ocidente contra a Rússia e dar apoio para o governo ucraniano. A avaliação é de um dos principais brasilianistas americanos, James Green.

Lula viaja aos EUA na quinta-feira para uma visita que pode definir em parte o desembarque do Brasil no cenário internacional.

Para observadores estrangeiros e mesmo fontes dentro do Itamaraty, Biden não perderá a ocasião para insistir com seu novo aliado entre os emergentes sobre a necessidade de que o Ocidente forme uma coalizão contra Vladimir Putin.

O mesmo assunto já foi tratado pelo chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, e pelo presidente da França, Emmanuel Macron, em diferentes conversas com Lula. Conforme o UOL revelou com exclusividade na semana passada, o brasileiro chegou a dizer ao francês que considerava que a invasão da Ucrânia havia sido um ato ilegal por parte dos russos. Mas insistiu que Brasília não faria parte da operação de guerra.

No centro da agenda está ainda a participação do Brasil na aliança pela democracia, uma espécie de front americano contra os chineses.

Segundo Green, um aspecto ainda fundamental será o compromisso de Brasília e Washington de defesa da democracia, após os episódios em 2021 no Capitólio e em 2023 na Praça dos Três Poderes. Uma sombra, porém, sobre o encontro será a presença de Jair Bolsonaro em território americano. Para o especialista, se o governo brasileiro o acusasse de um crime grave, “não ficaria surpreso se ele fosse extraditado”.

Há claramente um sentimento entre importantes senadores democratas e membros da Câmara dos Deputados de que Bolsonaro não deve permanecer nos Estados Unidos por sua suposta participação em tentativas de golpe de Estado contra o presidente Lula.”

Historiador, brasilianista e escritor, James Green é o diretor de um dos mais importantes centros de estudos sobre o Brasil no exterior, localizado na Universidade de Brown, nos Estados Unidos. Ele é ainda o presidente do conselho do WBO (Washington Brazil Office), uma entidade que mobiliza as forças políticas americanas para a defesa da democracia no Brasil.

Green tem uma longa história de ativismo pela democracia brasileira. Em 1973, com apenas 22 anos, ele protestava diante da embaixada do Brasil em Washington, denunciando a tortura promovida pelo regime militar.

Naquele mesmo ano, ele confrontou o então embaixador do Brasil nos EUA, João Augusto de Araújo Castro, sobre a situação de Manoel da Conceição, líder camponês de Maranhão, militante de Ação Popular, preso e torturado. O diplomata, num evento, respondeu não existiam presos políticos no Brasil e nem tortura.

Anos depois, o SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão da ditadura, imaginou que “James Green” fosse um codinome do jornalista Fernando Gabeira, que militava naquele momento no MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro).

Hoje, Green volta a defender a democracia brasileira, com uma atuação nos bastidores.

Leia os principais trechos da entrevista:

O que está em jogo nessa visita de Lula?

Green: Esta reunião é uma primeira oportunidade para os dois chefes de Estado se encontrarem e discutirem pontos de interesse comum, principalmente a defesa da democracia em ambos os países contra a extrema-direita e a proteção do meio ambiente. Essas são partes cruciais das agendas dos programas dos dois governos e certamente serão pontos cruciais das agendas dos dois presidentes para o encontro.

Biden se mostrou solidário com a manutenção da democracia brasileira, desde o período eleitoral. Qual o interesse da Casa Branca com esse comportamento? Trata-se de uma preocupação genuína com o Brasil ou com a extrema direita americana?

Antes da invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e da sede do STF em 8 de janeiro de 2023, acho que os brasileiros não entenderam totalmente o trauma que os americanos viveram com a invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2022 Claro que os brasileiros poderiam fazer a analogia entre Trump e Bolsonaro já que ambos negaram a Covid-19, tiveram ideias racistas, usaram fake news e mentiras para vencer suas eleições respectivas e governaram construindo uma base irracional de apoio de fanáticos que em ambos os casos acreditaram que seu candidato realmente ganhou as eleições quando eles perderam. A esse respeito, Bolsonaro copiou consistentemente as ações de Trump.

Para as forças democráticas nos Estados Unidos que acompanharam o governo Bolsonaro e as eleições brasileiras, incluindo políticos e formuladores de políticas no governo Biden, o dia 8 de janeiro apenas confirmou todas as analogias entre o que Trump e seus apoiadores de extrema direita representam e o que Bolsonaro e seus apoiadores representam. Mas claramente Biden entendeu isso em 2021 quando começou a enviar mensagens ao Brasil por diferentes canais para as forças armadas de que os EUA acreditavam no processo eleitoral brasileiro e se oporiam a qualquer tentativa de golpe de estado militar.

Claro que esta é uma grande mudança em relação à posição dos democratas, incluindo o presidente Kennedy e Johnson, que apoiaram o golpe de estado de 1964, mas o mundo é totalmente diferente sessenta anos depois.

Lula chega num momento de retomada da política externa. Mas demonstrando uma visão de diferença sobre Ucrânia. Até que ponto isso é um obstáculo na relação?

Tenho certeza de que Biden tentará convencer Lula a se juntar ao esforço internacional não apenas para se opor à invasão da Ucrânia pela Rússia, mas para ajudar concretamente os invadidos. Pelas declarações públicas, parece que Lula está mais inclinado a favorecer alguma forma de negociação de paz entre os dois países, o que muitos observadores consideram uma possibilidade muito difícil porque pode significar a Ucrânia cedendo território.

A posição de Lula parece ter mudado ligeiramente nos últimos meses. Veremos se há alguma mudança adicional nas atitudes do governo brasileiro em relação à guerra. Tenho certeza, porém, de que Biden tentará convencê-lo a caminhar no sentido de apoiar a Ucrânia, embora neste momento pareça improvável que o Brasil esteja disposto a fazê-lo.

O que esperar da relação Biden-Lula no tema venezuelano?

Acho que existe a possibilidade de mais convergência do que as pessoas podem esperar. Biden parece ter mudado sua postura em relação à Venezuela e é muito menos intransigente do que Trump, e o Brasil claramente favorece o reconhecimento do atual governo. Podemos nos surpreender ao ver algum movimento interessante nos próximos seis meses nessa frente.

Biden manteve uma agenda anti-China muito similar aos temas tratados por Trump. Como o Brasil e a América do Sul se encaixam nesse front para conter Pequim?

Acho que a maioria dos observadores concorda que as relações com a China são uma das grandes diferenças entre os dois países neste momento, até porque a China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil, tendo ultrapassado os Estados Unidos. Duvido que haja um terreno comum significativo em relação à China no momento.

Na questão ambiental, o que os americanos esperam de Lula?

Há um forte sentimento entre os ativistas ambientais nos Estados Unidos em favor da defesa da Amazônia e de seus habitantes, especialmente da população indígena, contra o desmatamento, novamente o genocídio dos povos indígenas e a favor de medidas para proteger um dos recursos mais protegidos do Brasil. A ex-deputada Deb Haaland, que hoje é secretária do Interior do Brasil, que supervisiona os povos indígenas dos Estados Unidos, as terras federais e o meio ambiente, construiu laços sólidos com o movimento indígena brasileiro quando estava na Câmara dos Deputados.

Como a primeira mulher indígena a ocupar esse cargo, assim como Sonia Guajajara é a primeira indígena brasileira a presidir o novo Ministério dos Povos Originários, existe a possibilidade de colaboração. Embora Biden enfrente muitas pressões políticas de interesses econômicos nos Estados Unidos, está claro que o meio ambiente e o avanço em direção a uma economia verde são uma prioridade importante. Presumo que a cooperação nesta área será muito importante para ambos os países.

A presença de Bolsonaro nos EUA é um obstáculo no diálogo entre os países? E a presença de outras vozes bolsonaristas?

Há claramente um sentimento entre importantes senadores democratas e membros da Câmara dos Deputados de que Bolsonaro não deve permanecer nos Estados Unidos por sua suposta participação em tentativas de golpe de Estado contra o presidente Lula.

E se o governo brasileiro o acusasse de um crime grave, não ficaria surpreso se ele fosse extraditado. Se você se lembra, durante a Cúpula das Américas em Los Angeles no ano passado, Bolsonaro tentou convencer Biden a apoiá-lo em suas conversas privadas, mas foi relatado que Biden simplesmente ignorou seus comentários. Dadas as semelhanças entre Trump e Bolsonaro, Biden claramente não tem afinidades com o ex-presidente brasileiro. No entanto, presumo que se houver perigo de que Bolsonaro seja extraviado, presumo que ele simplesmente fugirá para outro país disposto a recebê-lo.

O que representou o 8 de janeiro para a extrema direita globalizada?

Não tenho ideia do que a extrema direita global está discutindo em suas reuniões secretas de liderança, mas o fato de os apoiadores de Bolsonaro seguirem o manual de Trump é uma indicação de que as forças antidemocráticas em todo o mundo viram o que aconteceu em 6 de janeiro de 2020 no Unidos com a invasão do Capitólio dos EUA, e ao invés de concluir que essa tentativa de golpe é uma má estratégia, seus partidários no Brasil concluíram exatamente o contrário e tentaram uma jogada semelhante. Não tenho certeza se eles decidiram abandonar essa estratégia.

Uol