Como o bolonarismo seduziu os idosos

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Foto: REUTERS

“Você é patriota ou ‘jornazista’?”, pergunta dona Heloísa (nome fictício), de 67 anos, antes de aceitar conceder uma entrevista à BBC News Brasil.

Avessa aos meios de comunicação tradicionais, ela se informa apenas pelo WhatsApp. Foi no aplicativo de mensagens que ela recebeu a convocação para participar, ativamente, dos atos antidemocráticos em Brasília em 8 de janeiro.

“Não assisto à TV desde 2015. Naquele ano, eu me politizei ao descobrir o Brasil Paralelo [canal bolsonarista desmonetizado por ordem do Supremo Tribunal Federal] e o Olavo de Carvalho [ensaísta e influenciador digital de direita, morto em janeiro de 2022]”, diz dona Heloísa.

Embora não tenha entrado no Congresso Nacional, ela esteve entre o grupo que subiu na rampa e na parte elevada do edifício legislativo. Acabou detida no dia seguinte, quando a polícia desbaratou os acampamentos bolsonaristas diante de quartéis. Foi fichada e liberada após 12 horas, conta.

Alguns dos detidos nos atos e acampamentos agora responderão a processo legal. Até 31 de janeiro, o Ministério Público Federal havia apresentado denúncia contra 479 pessoas por crimes como associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e dano qualificado pela violência.

Dona Heloísa emociona-se ao explicar por que decidiu encarar a longa viagem de ônibus do interior de Minas Gerais, onde vive com o filho de 28 anos (“que também é de direita”), até a capital federal.

“Quero um país melhor para mim, para você e para todos. O Lula e a esquerda vão implementar o comunismo no Brasil. Vamos virar uma Venezuela, uma Cuba, uma Coreia do Norte”, argumenta.
O medo sentido por dona Heloísa, embora não tenha base em fatos concretos, parece ser chave para entender um fenômeno visível: os atos antidemocráticos pós-eleição presidencial passaram a atrair pessoas mais velhas em comparação ao que se via em protestos populares até então no Brasil.

De um lado, há o temor de que isso alimente uma “velhofobia”, ou preconceito contra idosos. De outro, provoca debates sobre como prevenir — ou reverter — a radicalização, o isolamento, a sensação de ressentimento e a suscetibilidade à desinformação de parte da população mais velha, um grupo que é cada vez mais numeroso no Brasil e no mundo.

“Existe maior vulnerabilidade dos mais velhos ao discurso que provoca medo e ameaça destruir o mundo que eles conhecem e onde se sentem seguros e protegidos”, diz Mirian Goldenberg, professora-titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“O WhatsApp e a mídia de extrema direita se tornaram armas poderosas para provocar medo e insegurança nos mais velhos. Eles sentem muito mais medo com as ameaças de destruição dos seus valores.”
O perigo, porém, segundo Goldenberg, é associar a velhice a uma inclinação ao extremismo de direita.

“Esse discurso não é só perigoso, mas criminoso. É reforçar ainda mais o preconceito”, afirma Goldenberg, uma das principais estudiosas do envelhecimento no Brasil. “Se antes ouvíamos que velhos são ‘teimosos’ ou ‘gagás’, agora estamos ouvindo que eles são ‘fascistas e de extrema-direita’.”

O que, então, podemos concluir a partir da presença de tantos cabelos grisalhos na invasão dos Três Poderes e nos acampamentos diante de quartéis?

Os dados corroboram a percepção de que os atos antidemocráticos atraíram um público mais velho, embora não necessariamente idoso (que, para efeitos legais, é quem tem 60 anos ou mais).

Segundo a lista divulgada pela Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape-DF) depois do 8 de janeiro, a faixa etária prevalente entre os mais de mil detidos nos atos era de 50 e 59 anos (393 presos).

No grupo entre 60 e 69 anos, havia 40 pessoas presas. Mais duas tinham mais de 70 anos, e uma terceira, mais de 80.
No entanto, antes disso, a Polícia Federal havia liberado outras 684 pessoas detidas no acampamento diante do QG do Exército, acusadas de participarem das manifestações pró-Bolsonaro. A Seape-DF não informou quantas dessas pessoas liberadas eram idosas.

No Brasil em geral, uma pesquisa sobre a polarização no país, divulgada em abril de 2022, das organizações Locomotiva, Despolarize e Tide Setúbal, identificou que 35% dos 1.300 entrevistados de 60 anos ou mais se diziam de direita — o maior contingente entre todas as faixas etárias.

Os idosos entrevistados também se identificavam mais com expressões como “cidadão de bem” e “patriota”, em comparação com outras faixas etárias.

Mas não se pode dizer que houve nesse grupo um alinhamento automático a Jair Bolsonaro (PL). Em 27 de outubro, a poucos dias do segundo turno das eleições de 2022, pesquisa Datafolha apontou que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liderava em intenção de votos entre eleitores com 60 anos ou mais, com 51% contra os 43% de Bolsonaro.

O que parece corroborar a tese de Mirian Goldenberg de que, embora muitos desse grupo etário se identifiquem mais com a direita, a maioria não se radicalizou em favor do ex-presidente. “Trata-se de uma pequena minoria de pessoas, e não foi com a velhice que se tornaram assim. A população mais idosa está sendo erroneamente estigmatizada”, opina a antropóloga à BBC News Brasil.

O problema é que os fenômenos por trás dessa radicalização são complexos — e estão associados a questões tanto nacionais, quanto globais.

Alguns anos atrás, o acadêmico italiano Edoardo Campanella analisou, em países da Europa e nos Estados Unidos, o que chama de “elo entre envelhecimento e populismo”.

Campanella observou que eleitores mais velhos desses lugares se mostraram desproporcionalmente mais alinhados que outros grupos etários ao nacionalismo e à direita, e em eleições cruciais — por exemplo, no plebiscito do Brexit, que resultou na saída do Reino Unido da União Europeia, e na vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, ambos em 2016.

“Nem o Lei e Justiça nem o Fidesz [partidos populistas de direita no poder na Polônia e Hungria, respectivamente] teriam chegado ao poder sem o apoio entusiasmado dos mais velhos”, escreveu em 2018 Campanella, atualmente pesquisador no Centro de Negócios e Governo na Escola de Negócios Kennedy da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Campanella acha que esse fenômeno internacional é motivado, em grande parte, pelo medo: muitas pessoas mais velhas são desproporcionalmente mais marginalizadas pela revolução tecnológica global e, em partes da Europa e dos Estados Unidos, sentem que seus valores mais tradicionais têm sido ameaçados por movimentos pró-integração e imigração.

“Líderes populistas tendem a usar esses medos em benefício eleitoral próprio”, diz Campanella, agregando que isso ocorre num momento em que até mesmo países ricos têm menos capacidade de aplacar as preocupações financeiras dessa faixa etária.
“A maior parte dos governos não tem mais a capacidade fiscal de proteger os mais vulneráveis, que geralmente incluem os idosos. No passado, especialmente na Europa continental, o sistema previdenciário tinha o papel de absorver choques [econômicos e sociais] e era extremamente importante para aplacar esses medos diante da instabilidade econômica. No momento, isso não é mais possível, ou ficou extremamente difícil.”

Além do medo, outro elemento importante entre os mais velhos, diz Campanella, é a nostalgia, ou o apego à ideia de um passado glorioso e próspero.

“É uma força que teve um papel muito importante (…) no Brexit — a nostalgia em relação ao Império Britânico — e nos Estados Unidos — com o slogan (de Trump) Faça a América Grande Novamente”, afirma o pesquisador, autor de um livro sobre o assunto: Anglo-Nostalgia, a Política da Emoção em um Ocidente Fraturado, em tradução livre.

“Todos esses movimentos nacionalistas e populistas, especialmente da extrema direita na Europa, tentaram criar o mito de um passado que não existe mais. E está muito claro que as pessoas mais velhas são mais vulneráveis a esses sentimentos nostálgicos, porque tendem a se projetar mais no passado do que no futuro”, diz Campanella à BBC News Brasil.

Aqui no Brasil, alguns traços de nostalgia aparecem também no discurso de dona Heloísa ao comentar sua motivação para participar dos atos em Brasília — em especial quando a conversa com a reportagem toca no período da ditadura militar, repetidamente glorificado por Bolsonaro.

“Não fale ‘ditadura militar’, fale ‘governo militar'”, diz ela. “Foi a melhor época da minha vida. Eu tinha uma vida tranquila. Eu andava à noite, só eu e meu irmão, a gente ia para a boate, voltava às 3h da manhã, andando a pé, porque era muito, muito legal. Eu acho que nosso ensino era bom, a gente sabia o que era pátria, o que era Deus, sabia o que era moral e bons costumes”, diz dona Heloísa, ao longo de uma hora de conversa por telefone.

“Me considero de direita e a favor da intervenção militar. Defendo pátria, família e liberdade. E acredito que o Bolsonaro venceu as eleições, mas elas foram fraudadas. Por isso, decidi participar da manifestação em Brasília”, diz ela, repetindo uma das desinformações que circularam após o pleito de 2022.

No Brasil, o sociólogo Rudá Ricci acha que um outro fenômeno se interrelaciona com o medo e o ressentimento: a busca humana por sentido e emoção na vida.

Ele teoriza que uma espécie de “tédio crônico” parece estar acometendo uma parcela dos brasileiros radicalizados, em especial em cidades do interior do Brasil, onde as oportunidades tendem a ser mais escassas.

“Esse tédio impele a pessoa não só à melancolia, mas a uma luta desesperada para ter um sentido na vida”, diz Ricci, que é autor do livro Fascismo Brasileiro: E o Brasil Gerou o seu Ovo da Serpente (Kotter Editorial, 2022).
“O que define [esse tédio crônico], me parece, é essa característica interiorana — de pessoas que têm uma vida extremamente pacata, mas que o seu espírito gostaria de algo mais. E, nesse sentido, o bolsonarismo criou um caminho, o de poder se projetar pelo anti-institucionalismo, ou seja, pela negação do campo institucional.”

Como esse fenômeno parece ganhar capilaridade com as redes sociais, traz um desafio adicional ao presidente Lula, avalia Ricci. “O governo está na parede porque [a esquerda] não sabe mais movimentar a sociedade civil. Não é que não tenha identidade, mas não tem mais essas relações orgânicas [com a população comum]. E o bolsonarismo tem”, opina.

Por fim, um elemento importante nessa equação toda é o que se chama de “letramento digital”: pesquisas acadêmicas já identificaram que pessoas mais velhas são mais suscetíveis à desinformação online.

Nos Estados Unidos, pessoas com 65 anos ou mais “tinham o dobro de probabilidade de serem expostas a fake news e sete vezes mais probabilidade de compartilhar notícias falsas no Facebook, em comparação com jovens de 18 a 29 anos”, segundo estudo publicado na revista Nature.

A mesma pesquisa, porém, traz razões para otimismo: após uma sessão de um curso digital (em inglês), 85% dos participantes aumentaram sua capacidade de discernir informações falsas, 11 pontos percentuais a mais do que antes dessa sessão.

Para Edoardo Campanella, as saídas têm de passar também pela ação sociopolítica.

“O que os partidos populistas tentam fazer é proteger os mais velhos. Então, acho que os partidos tradicionais deveriam empoderar os mais velhos, o que é bem diferente”, diz ele.
“Empoderá-los significa mantê-los munidos das ferramentas e habilidades certas para um mundo em transformação. Também significa que precisamos ser realistas quanto ao processo de globalização — a ideia de que a integração econômica é sempre boa provavelmente já ficou datada. Mesmo em economias grandes, é preciso combinar integração econômica com políticas domésticas que empoderem e, em certa medida, protejam os mais vulneráveis.”

Não há caminhos fáceis, diz o estudioso, mas “a ideia de aprendizado constante precisa ser adaptada à realidade”.

Ao mesmo tempo em que Campanella vê um risco de crescentes conflitos intergeracionais por conta da radicalização, acha que a nostalgia pode, também, ser uma força benigna:

“Existe uma forma positiva de nostalgia, (…) se ela for usada para trazer um futuro melhor. Você pode valorizar a tradição, a história, mas sem a ilusão de recriar aquela realidade, porque o mundo mudou”.
Para Rudá Ricci, alienar ou punir as pessoas radicalizadas também traz riscos — o de esse grupo se entrincheirar ainda mais.

“Claro que tem que haver a afirmação da lei [para participantes de atos democráticos], regras de convivência, ordem democrática. Mas se a gente ficar preso nisso, a gente vai pagar mais caro daqui a pouco. E eu não vejo o governo federal, nem as instituições, discutindo esses valores, esse problema existencial, essa decadência econômica [que movem o radicalismo].”

G1