Ex-interventor do DF quer diálogo com polícias

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Foto: Wenderson Araujo/Valor

Na tarde de 8 de janeiro, o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, estava no gabinete de seu chefe, o ministro Flávio Dino, quando uma parte dos vândalos que promovia ataques às sedes dos três Poderes penetrava os jardins de uma lateral do edifício-sede da pasta. Estavam ali também os ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais), José Múcio (Defesa), Gonçalves Dias (Gabinete de Segurança Institucional) e a governadora em exercício do Distrito Federal, Celina Leão.

Com o governador Ibaneis Rocha incomunicável, a intervenção na segurança pública DF já estava decidida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Havia, porém, um impasse sobre quem seria o interventor, diante da impossibilidade constitucional de Dino, senador eleito, assumir a função.

“Não é razoável que plataformas nas redes sociais lucrem com a disseminação de discurso de ódio e ataques à democracia”

Cappelli conta que desceu ao térreo e organizou uma pequena tropa de cinco ou seis homens da Força Nacional para fazer a proteção do prédio. Quando retornou, havia sido nomeado interventor.

Jornalista de formação, passou 23 dias no posto. Para ele, Ibaneis cometeu o grave erro de entregar o cargo de secretário de Segurança a Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e que está preso por ordem do ministro Alexandre de Morais, do Supremo Tribunal Federal (STF). Cappelli vê atos de insubordinação de PMs, mas prefere não generalizar os policiais como “golpistas”. E defende uma aproximação da esquerda com as forças de segurança, hoje alinhadas a Bolsonaro.

Ele afirma que a ideia de criar uma Guarda Nacional para cuidar da segurança da região da Esplanada está em estudo. Assim como a possibilidade de fazer uma regulação de aplicativos de internet para frear a “disseminação do ódio”.

“Não pode haver liberdade para rasgar a Constituição. Porque senão a gente volta para um faroeste, um bangue-bangue”

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: Como foi o seu 8 de janeiro?

Ricardo Cappelli: Nós, até por volta das 14h, tínhamos a garantia do governo do DF de que estava tudo bem, de que a segurança estava reforçada e a manifestação era pacífica. Nós estávamos almoçando tranquilamente aqui em Brasília, até que a gente começou a ver que a coisa Aí, o ministro veio direto para o gabinete dele, eu de imediato também vim. A gente estava aqui em cima no gabinete dele. Logo em seguida chegaram o Padilha, o Múcio, a Miriam Belchior [secretária-executiva da Casa Civil], o Gonçalves Dias, a Celina Leão. E, junto com eles, assessores. Virou um gabinete de muita gente. A gente olhava aquelas cenas

Valor: Viram quando romperam a linha de contenção da polícia?

Cappelli: A hora que a gente chegou, eles já tinham rompido a linha de contenção. Eles já estavam aqui no gramado. A gente tentou contato com o Ibaneis, sem sucesso. Uma situação muito difícil. Não houve um debate sobre GLO [Operação de Garantia da Lei e da Ordem], eu pelo menos não presenciei isso. À primeira vista, foi a ideia de intervenção civil, a intervenção federal na segurança pública. O interventor seria o ministro Flávio Dino, o presidente tinha indicado. Só que, pela Constituição, por ser senador, ele não pode assumir um cargo executivo que não seja o de ministro. E aí ficou aquela coisa, quem vai ser, quem não vai. E tem que definir no calor da hora, precisava ter uma decisão imediata.

Valor: Como chegou-se ao seu nome para o posto?

Cappelli: Quando a decisão foi tomada, eu nem estava na sala. A gente estava aqui em cima [no MJ], e tinha cinco ou seis homens da Força Nacional aqui embaixo. Só que eles estavam numa postura passiva, e começaram a entrar manifestantes pela lateral. Eu acho que aí foi a hora que eu virei interventor. Porque eu vi aquilo e falei: “Não é possível”. Eu desci, me apresentei a eles e dei uma voz de comando, botei em linha na frente e disse: “Daqui ninguém passa” e tal. Meio que organizando. E, quando eu olho para cima, estão o Flávio e o Padilha apontando para mim

Valor: Dizendo “achamos”…

Cappelli: Achamos [risos]. Quando eu subi, a chefe de gabinete do ministro perguntou meu nome completo. Eu perguntei: “Mas por que você quer o meu nome?” E ela: “O ministro falou que você vai ser o interventor”.

Valor: Sem perguntar ao senhor?

Cappelli: Sem perguntar. Aí, ele [Dino] me mandou o decreto por “zap” e falou: “Boa sorte; desça e assuma o comando da tropa, precisamos estancar isso imediatamente”.

Valor: O que já se sabe sobre o papel do governador Ibaneis?

Cappelli: Eu acho que o principal erro dele foi ter nomeado o Anderson. Porque, veja você, o Anderson, uma pessoa da extrema confiança do Bolsonaro. E ele não era só ministro da Justiça, ele era do núcleo político do Bolsonaro. O Bolsonaro passou quatro anos atacando as instituições. E, no final, atacando abertamente o STF. Vez por outra, ele atacava o Congresso. Quando o Lula é eleito, estava na cara que ele ia passar a atacar o Poder Executivo também. Então, me parece no mínimo uma decisão temerária e imprudente botar esse cara para cuidar da segurança dessa instituições.

Valor: Então, o governador teve uma culpa política, mas não agiu deliberadamente?

Cappelli: Não tem nenhum elemento que possa afirmar que o Ibaneis sabia. O que ele alega é que ele também foi pego de surpresa.

Valor: E o coronel Fábio Augusto [comandante da PM exonerado e preso após 8 de janeiro]?

Cappelli: Eu estive no campo no dia 8. Andei daqui até o Setor Militar Urbano com a linha da PM. No campo, você vê as pessoas. O Fábio Augusto estava meio atordoado, meio desesperado. E as imagens a que a gente teve acesso comprovam que ele desde cedo estava na Esplanada. E a gente tem muitos depoimentos que comprovam que ele estava na Esplanada e que ele ligava para os comandantes dos batalhões, ligava para RPMon [Regimento de Polícia Militar Montada], para a cavalaria, ligava para o Choque, e falava: “Cadê o reforço?” E o pessoal falava: “Está indo, está chegando”. E não chegou nunca. Tem imagem dele protegendo o Congresso Nacional na chapelaria. Um momento inclusive em que ele toma um golpe na cabeça, que rasga a testa dele. Então, ele lutou, mas perdeu o comando da tropa. Ele não tinha o comando da tropa. Ele foi atropelado. Isso que eu digo não é opinião, é o que a gente viu na imagem. Você pode fazer juízo de valor que quiser. Mas dizer que o Fábio não lutou não é correto.

Valor: Isso é um caso de insubordinação grave, não?

Cappelli: Sem dúvida. Por isso eu afastei não só ele, como todos os cinco subcomandantes principais. E foi aberto inquérito policial militar para apurar a responsabilidade desses cinco. Em especial o chefe do Departamento Operacional da PM [Jorge Naime, preso ontem pela PF], responsável pelo planejamento operacional das atividades. Quando tem uma situação muito fora do padrão, o DOP prepara um plano operacional, isso não existiu no dia 8. Aqui na Esplanada, pelas imagens que temos de drones, você não conta 150 homens.

Valor: Deixaram acontecer?

Cappelli: Houve um planejamento operacional muito falho. Tinha na linha de contenção alunos do curso de formação sem os equipamentos adequados. O que a gente vê nas imagens do choque eram 15 homens aqui na S1 [via onde fica o ministério]. Então, o planejamento operacional que não condiz com a informação de inteligência da própria secretaria, que foi encaminhado no dia 6 às 17h, ao Anderson, no gabinete dele. Eu já vi manifestações aqui de 50 mil, 100 mil pessoas. E ninguém nunca chegou perto de fazer o que eles fizeram.

Valor: Havia profissionais infiltrados na manifestação?

Cappelli: Claro que você tinha também, entre eles, claramente pessoas com treinamento profissional. Gente com luva específica para devolver bomba de gás lacrimogêneo, gente com rádio-comunicador, tinha movimentos organizados. Há policiais experientes em conter manifestação que falam que enfrentaram homens com conhecimento do campo de batalha e com táticas de combate e homens treinados.

Valor: Militares?

Cappelli: Muito provavelmente militares. Podem ser da reserva. Tudo isso a PF está apurando.

Valor: O que aconteceu é a prova de que o bolsonarismo contaminou a base da PM em alguns Estados?

Cappelli: O bolsonarismo entrou nas forças de segurança em função de uma agenda que ele montou e em função de uma postura dele [Bolsonaro]. Ele ia a tudo das forças de segurança, ele valorizava. Dizer que o bolsonarismo entrou é a mesma coisa que dizer que essas forças se tornaram forças golpistas, é um erro. Eu tive apoio da maioria esmagadora, não teve nenhum ato de insubordinação à autoridade que me foi conferida pelo presidente da República.

Valor: É possível “desbolsonarizar” as forças de segurança?

Cappelli: Nós precisamos refletir também porque o bolsonarismo entrou nessas instituições. É fácil imputar ao outro a responsabilidade. Nós precisamos entender por que eles foram seduzidos por essa narrativa bolsonarista. Acho que a extrema direita esticou a corda de um lado. Os democratas não podem esticar a corda para o outro. A gente tem que compreender que primeiro boa parte dos policiais vive em situações limítrofes, inclusive pessoais. Então, esse é um desafio da sociedade, dos democratas. Abrir um diálogo e compreender a realidade deles.

Valor: E a pauta de parte da esquerda de desmilitarizar a polícia?

Cappelli: Acho que não é um bom período. Tomar medida mais polêmica, no calor dos acontecimentos, nunca é bom. É melhor a gente esperar os ânimos esfriarem para poder ter uma avaliação mais fria, mais racional das questões.

Valor: A segurança da Esplanada vai passar a ser federal?

Cappelli: Existe um debate hoje sobre a criação da Guarda Nacional. O ministro Dino encaminhou uma proposta e o presidente Lula está avaliando essa questão. No dia 8, houve uma quebra de confiança. Essa quebra de confiança gerou o que gerou a intervenção. E gerou a reflexão sobre a necessidade de o governo federal ter uma tropa de ação direta de proteção dos Poderes aqui no Brasil. Esse é um debate que está em curso neste momento.

Valor: O fato de não terem desmontado os acampamentos na noite do dia 8 não permitiu a fuga de muitos vândalos?

Cappelli: Eventualmente pode ter acontecido? Pode. Mas eu confio muito na Polícia Federal. A Operação Lesa-Pátria está em curso sem data para acabar. Toda semana tem operação, tem novas prisões, novos indiciamentos, tem busca e apreensão. Quem cometeu o crime no dia 8, cedo ou tarde, será encontrado pela PF. Eu não tenho nenhuma dúvida.

Valor: Que outras medidas estão sendo pensadas?

Cappelli: Uma das questões que vem à pauta é a necessidade de abrir um diálogo com as plataformas [de internet]. Porque não é razoável que as plataformas nas redes lucrem com a disseminação de discurso de ódio, ataques ao Estado democrático. E se eximam de qualquer responsabilidade sobre isso. Se o modelo de negócio é gerar engajamento, ok. Mas isso não pode ser à custa da democracia.

Valor: O que pode ser feito? Endurecer a legislação?

Cappelli: Sim. A Europa enfrentou isso. Endureceu um pouco a legislação quando percebeu o potencial lesivo à democracia que a disseminação do discurso de ódio tem nas plataformas. Esse é um debate que está em curso ainda com a Presidência. O modelo europeu com certeza é uma referência importante.

Valor: O modelo de negócios nas redes hoje é o engajamento

Cappelli: A disputa hoje não é mais só pelo conteúdo, é pela atenção. E o discurso de ódio é isso, é a comunicação extremada, que existe de tudo que é lado. Tem gente que não é fascista, não é golpista nada disso, mas essa busca pela excitação gera o engajamento. O modelo de negócio, cada um pode ter o que quiser. Mas não pode ser às custas da erosão dos valores democráticos.

Valor: A esquerda sempre temeu que a lei antiterrorismo fosse usada contra os movimentos sociais. Agora a esquerda está mais preparada para enfrentar esse debate?

Cappelli: Eu acho que essa não é uma questão da esquerda ou da direita. É uma questão buscar um ponto de equilíbrio de proteção às instituições e à democracia. É como preservar as liberdades, sem rasgar o nosso contrato social. O limite da liberdade tem que ser o nosso contrato social, que é a Constituição. Não pode haver liberdade para rasgar a Constituição. Porque senão a gente volta para um faroeste. Sem a Constituição, a gente vive um bangue-bangue. A Constituição acima de tudo é uma garantia civilizatória.

Valor Econômico