Indústria de armas aciona bancada contra Lula
Foto: Wilton Junior/Estadão
O decreto antiarmas editado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia da posse provocou um efeito cascata não apenas no Judiciário, mas também no Congresso. Desde 3 de janeiro, 17 projetos de lei ou de decreto legislativo já foram apresentados por 34 deputados e dois senadores com o objetivo de sustar as mudanças em vigor e retomar a política de facilitação de posse e porte de armas de fogo. O movimento se repete em Estados.
O texto assinado por Lula suspende os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito a colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) e particulares. Restringe, ainda, o total de armas e munições permitido e suspende qualquer nova licença a clubes de tiro. Na comparação com janeiro de 2022, o número de armas cadastradas comuns caiu 71%.
Promessa de campanha do petista, a medida se opõe a uma série de políticas adotadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e defendidas por sua base política. Nos últimos quatro anos, um frequentador de clube de tiro, por exemplo, passou a ter direito a possuir 60 armas, sendo até 30 de uso restrito, como fuzis.
Na justificativa para tentar derrubar o decreto antiarmas, o deputado General Girão (PL-RN) relaciona o aumento substancial de brasileiros armados à queda de homicídios no País. Segundo ele, ainda que os números da violência no Brasil sejam equiparados aos de países em guerra, não há comprovação de que CACs, clubes de tiro e uso de calibres restritos contribuam para a violência.
“Ao contrário, observa-se que, mesmo com o aumento de 300% nos registros de arma de fogo pelos CACs, tal aumento não refletiu no aumento da violência”, afirma.
Filho do ex-presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) também propõe a derrubada do decreto. Com Julia Zanatta (PL-SC), ele diz que o texto é inconstitucional, pois extrapola os limites do cargo do presidente e ainda pode gerar desemprego. “Só a indústria nacional de armas e munições gera 70 mil empregos diretos e indiretos, fatura mais de R$ 6 bilhões por ano e exporta cerca de R$ 2,7 bilhões, gerando mais de R$ 1,9 bilhão em pagamento de impostos.”
Deputado mais votado no País, o novato Nikolas Ferreira (PL-MG), por exemplo, propõe uma alteração na legislação de 2003 que trata do sistema nacional de armas. “A história já demonstrou que um povo desarmado é um povo subjugado pelo Estado”, destaca, na justificativa. “Urge regulamentar, por meio de lei ordinária, os artigos revogados e os que se encontram ainda sob a forma de decreto, conferindo à sociedade o direito de defesa.”
No Senado, os autores são Marcos do Val (Podemos-ES) e Luiz Carlos Heinze (PP-RS). Ambos os projetos também defendem sustar os efeitos do revogaço de Lula. Como são recentes, nenhum deles avançou, nem na Câmara nem no Senado.
De acordo com o cientista político Eduardo Grin, da FGV-SP, após a decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de afastar qualquer julgamento do decreto por inconstitucionalidade, a aprovação de matérias relacionadas fica mais difícil.
“O Poder Executivo tem a prerrogativa de regulamentar leis. Fernando Henrique Cardoso, Jair Bolsonaro e, agora, Lula assim o fizeram, cada um à sua maneira. Se, por ventura, um projeto de decreto legislativo for aprovado no Congresso, este deve ir parar no Supremo, que, por sua vez, deverá decidir a favor do presidente”, afirmou Grin.
A tramitação das propostas, no entanto, vai depender da base de sustentação de Lula no Congresso, ainda a ser posta à prova. “É claro que há uma disputa política colocada, e, em tese, a oposição pode obter maioria simples para aprovar a matéria. Esse deve ser um dos primeiros movimentos para tentar desgastar o governo Lula, mas, neste caso, o tema deve ir parar na Justiça.”
Para Gilmar, são evidentes a constitucionalidade e a legalidade do decreto. Ele também ressaltou que a medida está em harmonia com os últimos pronunciamentos do Supremo e que sua edição tem o objetivo de estabelecer uma espécie de “freio de arrumação na tendência de vertiginosa flexibilização das normas de acesso a armas no Brasil”.
A quantidade de armas em acervos particulares no Brasil – aqueles que não pertencem a órgãos públicos – está próxima de 3 milhões, segundo dados obtidos pelos institutos Sou da Paz e Igarapé, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), e divulgados pelo Estadão. Esse total mais do que dobrou nos últimos cinco anos – em 2018, era de 1,3 milhão.
Ao comentar os efeitos da revogação antiarmas de Lula, o ministro da Justiça, Flávio Dino, disse na semana passada que “acabou o libera geral de armas no Brasil” e que o “decreto não será derrubado”.
também participam do movimento e até mesmo de forma antecipada. Em Mato Grosso, foi aprovada em julho do ano passado uma lei que “reconhece o risco da atividade e a efetiva necessidade do porte de armas de fogo ao atirador desportivo”. O texto foi sancionado pelo governador Mauro Mendes (União Brasil).
Na Assembleia Legislativa de São Paulo, a bancada bolsonarista tem projeto idêntico. Encampado por Gil Diniz (PL), Tenente Nascimento (Republicanos), Letícia Aguiar (PP) e Agente Federal Danilo Balas (PL), o texto ainda não foi levado a plenário. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) defende a “liberdade dos cidadãos em relação à posse e, em determinados casos, o porte de armas”.
No entanto, segundo Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da FGV-SP, a competência para tratar do tema é exclusiva da União.
A defesa ao acesso a armas de fogo, segundo o gerente de Relações Institucionais do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, sempre foi um tema discutido no Brasil por envolver uma estrutura de lobby já estabelecida. No entanto, de acordo com ele, a bandeira do armamentismo passou a ser usada como uma ferramenta política.
“Ao longo dos últimos dez anos, a polarização da sociedade, muito radical em alguns setores politicamente ativos, resultou na defesa de um armamentismo desenfreado dentro de uma perspectiva até política, o que é muito perigoso. Passou-se a se falar de arma de fogo para além da questão da segurança pública. Hoje, virou um instrumento de ação política”, disse, em referência aos projetos sobre o tema no Congresso e nos Estados.
Para Angeli, é preciso que o debate seja travado por deputados e senadores diante do mercado que se formou a partir das medidas editadas por Bolsonaro. “Os decretos geraram dinheiro e riqueza. O número de armas em circulação explodiu, assim como o número de clubes de tiro.”