Lula decide não ter porta-voz

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Foto: Divulgação / Presidência

Na próxima sexta-feira, 10, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reúne com Joe Biden em Washington. Antes e depois, o chefe dos Estados Unidos contará com a jovem porta-voz Karine Jean Pierre – a primeira mulher negra a ocupar o cargo – para explicar e aprofundar as informações. O líder brasileiro não terá um mesmo tipo de profissional para dar sua posição sobre o encontro.

A ideia de abolir o porta-voz é do antecessor do petista. Jair Bolsonaro demitiu o general Otávio Rêgo Barros, em agosto de 2020. O oficial começou a aparecer demais na cena palaciana, na visão do então presidente e assessores de seu “gabinete do ódio”. Além dos ciúmes, Rêgo Barros tinha um tom ameno e afável num palácio de conflitos permanentes. Bolsonaro optou por transmissões ao vivo em suas redes sociais, sem perguntas de repórteres e o contraditório.

Por enquanto, o governo Lula seguirá a mesma linha de comunicação com a imprensa que atua na cobertura diária do Palácio do Planalto. Ele tem dito que não vê utilidade no cargo. “No momento não sentimos a necessidade específica do cargo de porta-voz”, afirmou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) em nota ao Estadão.

Nesse caso, quem costuma conversar com a imprensa para explicar algum ato do presidente são assessores ou ministros. Sem porta-voz, a tarefa costuma ser executada pelos subordinados longe das câmeras e em off – jargão jornalístico para conversas em que a autoridade não mostra o rosto nem dá o nome. Logo, repostas pela metade ou o silêncio oficializado não causam desgaste para o governo.

Nos Estados Unidos, berço do cargo de porta-voz, e em outros países que contam com esse personagem do governo, como a Argentina e a China, são realizadas reuniões diárias com os jornalistas para que estes apresentem suas demandas de informação a serem respondidas pelo governo.

Sem um representante dos interesses do presidente para comunicar suas intenções, perde-se até mesmo o direito ao registro histórico do silenciamento oficial da Presidência diante de assuntos delicados e para os quais não há resposta fácil. Um exemplo recente no Brasil é a falta de pronunciamentos de Lula e demais membros do governo sobre o uso de dinheiro do orçamento secreto pelo ministro das Comunicações, Juscelino Filho, para asfaltar a própria fazenda no Maranhão, como revelou o Estadão.

O porta-voz também tem a função de organizar o repasse de informações e evitar contradições num núcleo de poder que é uma máquina de notícias e especulações produzidas a todo instante.

Nos primeiros dias do governo Lula, a falta do profissional da área teve uma série de reações negativas, especialmente na economia, com quedas da bolsa e de ações no mercado. Não havia alguém para servir de anteparo a informações contraditórias do governo Lula e seus ministros. Foi um festival de tiros no pé.

Luiz Marinho, da pasta do Trabalho, disse em público que iria propor o fim do saque-aniversário do FGTS, benefício concedido no governo anterior. A fala surpreendeu o próprio palácio. Já Carlos Lupi, da Previdência Social, chegou a anunciar que a reforma previdenciária de 2019 seria revista. O colega Rui Costa, ministro-chefe da Casa Civil, o desmentiu em público. Uma série de palavras desencontradas obrigou o presidente a marcar uma reunião ministerial para dizer que anúncios tinham de ter aval do Planalto.

Entretanto, a experiência da função de porta-voz no Brasil evidencia que a ausência deste profissional se torna cômoda para o governo, que pode se furtar de responder às perguntas diárias das ruas feitas por intermédio dos jornalistas. Quando não havia retorno da Presidência aos questionamentos da imprensa, o silêncio constrangedor do porta-voz ficava registrado na história, diferentemente de quando os assessores se calam em conversas privadas e as informações se perdem nos bastidores.

O posto de porta-voz foi criado em 1969, auge da ditadura militar. Escalado pelo general Emílio Garrastazu Médici, o jornalista Carlos Fehlberg ficou teve no posto até 1974. No período, o relacionamento entre a imprensa e o chefe do Executivo sofria com tensões constantes que eram, em parte, dissipadas pelos representantes do governo.

Durante os cinco anos do mandato do general Ernesto Geisel o governo ficou sem uma porta-voz para emitir os comunicados. Em 1979, com outro militar no poder, João Batista, o último do ciclo da ditadura, o jornalista Alexandre Garcia passou a exercer a função. Garcia deixou o posto após conceder entrevista a uma revista masculina e deixar-se fotografar deitado numa cama sem camisa.

A figura do porta-voz foi reinventada na democracia. Em vez de um profissional que apenas servia para dar um verniz de normalidade no fluxo de informações, o Planalto agora nas mãos de civis passou a expor um intermediário do presidente, com a obrigação de apresentar, todos os dias da semana, a posição oficial do governo. Esse modelo começou a ser elaborado ainda na transição. Em 1985, o jornalista Antônio Britto foi escolhido para ser porta-voz do presidente eleito pelo Colégio Eleitoral Tancredo Neves. Foi Britto quem anunciou oficialmente, horas véspera da posse, que o presidente tinha sido internado. Fez anúncios diários até a morte de Tancredo.

O modelo de porta-voz ficou diplomático e burocrático durante os governos de Fernando Henrique Cardoso. Três funcionários do Itamaraty se revezaram na função. Era uma contraposição ao carisma do chefe de Estado.

A figura gentil, mas de poucas palavras foi adotada pelos sucessores do tucano. Emotivo e não menos carismático, Lula nomeou o cientista político André Singer, de perfil paciente, educado e sempre com frases bem pensadas. De estilo polido e formal, o professor da USP destoava num governo de políticos descontraídos. Numa manhã, ele apareceu no campo da residência oficial da Granja do Torto para jogar uma partida de futebol com Lula e ministros. Era o único que vestia um uniforme completo de jogador – saído da loja.

Outro porta-voz do petista que evitou divididas foi o diplomata gaúcho Marcelo Baumbach. Ao se apresentar pela primeira vez no cargo, ele mostrou o distanciamento e, ao mesmo tempo, uma tentativa de agradar que se tornaram tradição. Numa conversa informal, uma repórter quis quebrar o “gelo” da conversa e perguntou se ele torcia para o Grêmio ou o Internacional. Baumbach disse que torcia para os dois times. Pela rivalidade das duas torcidas, talvez ele não precisava ser diplomata para fugir da pergunta.

Por sua vez, Dilma Rousseff escolheu Thomas Traumann para porta-voz. Foi ele quem teve de lidar com a crise de junho de 2013. Com o impeachment da presidente, o sucessor da presidente, Michel Temer, recorreu a um dos diplomatas que trabalharam na função com Fernando Henrique. Alexandre Parola voltou com o mesmo estilo da primeira passagem pelo Planalto.

Último a aparecer na função de porta-voz da Presidência, o general Rêgo Barros se contrapõe à ideia que circula no governo Lula. Ele avalia que o posto é uma ferramenta necessária à estrutura do poder, por sua capacidade de proteger a autoridade de “embates desnecessários” com a imprensa. “Ao mesmo tempo cria os canais de comunicação institucional, evitando narrativas paralelas que prejudicam ambos os lados: governo e imprensa”, afirmou.

Burocrática, diplomática demais ou obsoleta, a figura do porta-voz pode não ter agradado jornalistas e quem acompanha as notícias da Presidência ao longo do tempo. Mas causou não menos insatisfação em governos que tiveram de deixar registrado o seu silêncio em momentos fundamentais da vida brasileira.

Uma cena simbólica do possível fim da figura do porta-voz ocorreu na invasão ao Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro. Golpistas destruíram o quadro “Bandeira do Brasil”, de Jorge Eduardo, de 1995, que decorava a sala em que os porta-vozes davam entrevistas lacônicas, mas sem deixar de apresentar a face do governo no momento político.

Estadão