Ajudante de ordens ajudou a insuflar Bolsonaro
Mauro Cid foi presença constante ao lado de Bolsonaro durante o governo. Foto: Alexandre Cassiano/ 28/10/2022
No dia 1º de julho de 2021, o então presidente Jair Bolsonaro começava uma das suas tradicionais lives semanais no Palácio da Alvorada com uma dica a seus apoiadores. Na transmissão, fez uma recomendação de um livro que nunca chegou a abrir, mas foi lido por seu ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, que destacou alguns trechos que julgava ser interessantes. Bolsonaro gostou do que viu e citou uma passagem sobre a ingratidão na política, fazendo uma referência indireta à infidelidade de ex-correligionários. Na sequência, vociferou contra uma notícia selecionada por Cid sobre uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de investigar uma organização criminosa suspeita de espalhar notícias falsas. O tema estimulou o mandatário a lançar dúvidas infundadas sobre o sistema eleitoral, acusação que, mais tarde, colocou Bolsonaro na própria mira do inquérito. O fiel escudeiro assistia à cena atrás das câmeras.
De forma discreta, o tenente-coronel, de 43 anos, foi uma presença constante ao lado de Bolsonaro durante os quatro anos de governo. O militar da ativa ganhou a confiança ao assumir funções que iam além de carregar a mala e o celular do chefe. A maior evidência disso ocorreu no fim do ano passado, quando Cid tentou reaver as joias dadas pelo governo da Arábia Saudita e apreendidas pela Receita Federal — o presente seria incorporado ao acervo pessoal do então presidente. Pessoas próximas a Bolsonaro dizem que o ajudante de ordens teria convencido o chefe de que a operação daria certo. A investida atabalhoada pode levar o antigo ocupante do Palácio do Planalto a responder a mais uma investigação.
Desinformação.
Na visão de ex-integrantes do governo, Cid atuava muito mais como um Iago, o alferes shakespeariano eternizado por envenenar a mente de Otelo, do que um Sancho Pança, escudeiro “lúcido” de Don Quixote de La Mancha, o cavaleiro errante de Miguel de Cervantes. Uma das queixas de aliados de Bolsonaro é que era comum o militar levar ao chefe notícias falsas, em especial ligadas à pandemia e às urnas eletrônicas, temas considerados decisivos para o fracasso na tentativa de reeleição.
O tenente-coronel, com o passar do tempo, virou a figura com maior poder de influência sobre o ex-presidente, segundo um dos ministros mais proeminentes do governo Bolsonaro. Nas palavras desse colaborador, por ser mais afeito à ala radical do governo, Cid foi fundamental em decisões que afetaram diretamente a popularidade de Bolsonaro na gestão do combate à Covid-19. Foi capaz, por exemplo, de fazer o ex-presidente voltar atrás de raros posicionamentos em apoio à vacinação, após semanas de tentativas de convencimento de aliados. O ex-mandatário foi um dos poucos líderes mundiais a não colher popularidade na pandemia, ponto considerado decisivo para sua derrota eleitoral pelo grupo de ministros mais moderados do governo passado.
Segundo depoimentos colhidos pelo GLOBO, o ex-presidente foi aos poucos se sentindo muito solitário no exercício do poder, dividido entre duas alas, a radical e a moderada. Esse espaço foi então ocupado por Mauro Cid, que passou a ser o seu conselheiro mais próximo. O ajudante de ordens era um dos membros do governo que abasteciam Bolsonaro com notícias falsas e o convencia a exibi-las nas lives de quinta-feira. Virou o seu braço-direito.
A ala moderada considera que, apoiado por Cid, Bolsonaro deixou escapar uma “chance de ouro” ao não aproveitar o momento de pacificação promovido pela “Declaração à Nação”, carta redigida pelo ex-presidente Michel Temer e divulgada pelo Planalto para tentar estancar a crise causada no 7 de Setembro de 2021, quando fez ataques ao Poder Judiciário. De novo, Cid foi decisivo para a volta ao radicalismo, para desespero dos colaboradores que advogavam pelo distensionamento político.
Também foi por influência de Cid, nesse caso ajudado pelas convicções do ex-presidente, que Bolsonaro desistiu de indicar a sua ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para a vaga de vice na chapa em que tentou a reeleição em 2022. O então presidente acabou optando pelo general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, por considerar que a presença de um militar de alta patente o blindava de um eventual processo de impeachment no Congresso. O “ambiente paranoico”, insuflado pelo militar, falou mais alto no pé do ouvido do então chefe do Poder Executivo.
Quando membros do governo dividiam com Cid alguma ponderação que fariam para Bolsonaro numa reunião, o tenente-coronel se antecipava e contava ao chefe o que estava por vir. Ao iniciar a conversa, o então presidente já criticava o conteúdo que seria abordado e, assim, esvaziava o assunto, segundo o relato de um ex-ministro do governo. Para ter acesso privilegiado, alguns membros do alto escalão da Esplanada costumavam bajular o ajudante de ordens, que tinha o poder de abrir brechas na agenda do ex-mandatário.
Outros dois ex-ministros avaliam que a influência de Cid se deu por um “vácuo” de atuação de integrantes do gabinete presidencial, que teriam deixado de cumprir funções básicas. O tenente-coronel colocava-se à disposição do chefe a todo instante, inclusive em suas folgas, e para cumprir todas as missões.
— É comum que o ajudante de ordens ganhe espaço junto ao seu chefe. Acho que a campanha que estão fazendo contra ele é uma grande injustiça — defende o ex-ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).
Ascensão e queda.
Antes de despachar no Palácio do Planalto, Cid teve uma trajetória exemplar nos quartéis. Filho do general Mauro César Lourena Cid, colega de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), o tenente-coronel foi o primeiro colocado em suas turmas na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). Ao se destacar nas fileiras do Exército, Cid foi selecionado para passar uma temporada nos Estados Unidos. Antes de embarcar, porém, foi indicado para assumir a função de principal auxiliar do então presidente eleito em 2018. A recomendação partiu do general Tomás Paiva, comandante do Exército e ex-ajudante de ordens dos ex-presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique.
O destino de Tomás se cruzaria novamente com o de Cid no início deste ano. O general ascendeu à chefia da Força em janeiro, em substituição a Júlio César Arruda, que foi demitido pelo presidente Luiz Inácio Lula Silva ao se recusar a rever a designação de Cid para chefiar um batalhão de operações especiais considerado estratégico. Tomás suspendeu a nomeação do militar, relegado a uma função de menor expressão até que as investigações sobre fake news de que é alvo no Supremo sejam concluídas. Na prática, o veto, somado ao escândalo das joias, ampliou a distância entre o ex-garoto prodígio do Exército e uma cadeira no Alto Comando da Força, ápice da carreira na caserna.