Bolsonaro confessa que governava para empresários

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Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Antes de o ponteiro marcar 9h, uma pequena fila começa a se formar em frente à casa de número 200, localizada na esquina da rua Auburn do resort de luxo Encore Resort at Reunion, na cidade de Kissimmee, Flórida (EUA). O imóvel pertence ao ex-lutador de MMA José Aldo e abriga, desde 30 de dezembro do ano passado, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

A casa, com capacidade de abrigar até cinco famílias, não tem muro e segue o padrão das residências americanas. São nove quartos decorados com personagens infantis, como minions, Moana e Mickey. Há, ainda, sala de cinema, ambiente de jogos, cozinha com mesa de 14 lugares, além de uma ilha com outros seis assentos, piscina com churrasqueira e uma garagem adaptada para jogos, com luz de led e cadeiras gamers com o tema Avatar.

Para preservar a privacidade da família Bolsonaro, foram colocados painéis de proteção na área da piscina, uma vez que o modelo do condomínio conta apenas com uma pequena cerca entre os lotes. O imóvel também foi inspecionado pela polícia dos Estados Unidos.

A estadia de Bolsonaro no país estrangeiro deve terminar até o fim deste mês. Na terça-feira (28/2), o governo Lula prorrogou, até 30 de março, o prazo concedido para três seguranças do ex-presidente permanecerem nos Estados Unidos. Segundo a portaria publicada no Diário Oficial da União, os agentes deverão acompanhar o ex-mandatário em “agenda internacional nas cidades de Deerfield Beach e Orlando, Flórida”.

A comitiva de Bolsonaro contou com 39 assessores e seguranças. O grupo incluía os militares Mauro César Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e alvo de investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) por suspeitas de uma espécie de caixa 2 no Palácio do Planalto; e Marcelo Ustra, primo do coronel Brilhante Ustra, primeiro militar brasileiro condenado pela prática de tortura. Apenas no período de 1º a 15 de janeiro deste ano, o ex-presidente gerou uma despesa de R$ 63,5 mil, gastos com a equipe de apoio.

Cerca de oito seguranças se revezam 24 horas nos sete dias da semana. Os assessores, em grande parte policiais e ex-policiais militares, usam uma casa de apoio localizada nas proximidades do condomínio, em Magic Village, para descansar nos dias de folga. Boa parte da equipe não domina o inglês e conta com o auxílio de vizinhos ou de funcionários brasileiros do resort para se comunicar com a administração do condomínio.

Embora os horários de visita ao ex-mandatário variem, a presença do político é quase certa por volta das 10h e das 15h, no fuso local. Já foram contabilizados nove encontros por dia, com filas formadas por até 200 pessoas. Em Orlando, Bolsonaro é tietado inclusive por personalidades públicas, a exemplo do meia-atacante Valdivia, ex-craque do Palmeiras.

No dia do encontro, o atleta usava camiseta que estampava o rosto do rapper, ator e compositor americano Tupac Amaru Shakur, o 2Pac — que, além de ser considerado um dos melhores e mais importantes artistas do hip-hop, é um ícone da esquerda. A mãe do músico, Afeni Shakur, estava entre os 21 Panteras Negras presos e acusados de conspiração para bombardear as delegacias de polícia em Nova York. O próprio Tupac também chegou a ser membro da Liga Comunista Jovem.

Além do jogador, o ator Caio Castro também ofereceu mimos ao ex-presidente. O artista promoveu um jantar para 20 convidados; entre eles, Jair Bolsonaro.

Pela manhã, a movimentação de apoiadores do ex-mandatário começa tímida, geralmente com cerca de cinco brasileiros, todos usando roupas que remetem às cores da bandeira nacional. Eles enfrentam baixas temperaturas para posar ao lado de Jair Bolsonaro. O grupo fica mais numeroso com o passar das horas.

Ao longo do dia, surgem apoiadores provenientes das mais diversas origens, de Norte a Sul do Brasil; os assuntos na fila de espera, porém, costumam ser os mesmos: possíveis fraudes nas eleições, desconfiança com relação às urnas, medidas rigorosas tomadas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e “integrantes da esquerda infiltrados” em ataques antidemocráticos.

A discussão só cessa quando os seguranças se levantam e abrem a porta do imóvel. Bolsonaro sai acenando e começa o primeiro “atendimento” do dia. Nesse momento, o político ganha status de artista: distribui autógrafos, recebe presentes, grava vídeos e tira fotos. Quando se sente mais confortável, faz pronunciamentos nos quais menciona obras de seu governo, lamenta o resultado das eleições e ataca adversários. Em uma das manhãs, após se certificar de que ninguém estava gravando, desabafou afirmando que suas pautas eram direcionadas aos empresários.

“Quem mora fora tem uma visão melhor do que acontece no Brasil. Ser patrão é um sofrimento. Agora, o STJ aprovou que demissão é só justa causa mesmo. Você não vai contratar mais ninguém. Botaram a questão da injúria racial como se racismo fosse. O que o povão sabe sobre o que é injúria? Imagine ser patrão em uma situação dessa?”
Na fala, o ex-presidente se refere a um julgamento que tramita no STF. A ação, no entanto, não dispõe sobre o fim da demissão sem justa causa, mas analisa a necessidade de que o empregador apresente justificativa para as demissões feitas por sua iniciativa. O processo, paralisado por um pedido de vista, deverá ser retomado ainda no primeiro semestre deste ano.

Sobre o racismo, o político menciona a Lei nº 14.532, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste ano, que tipifica a injúria racial como crime de racismo. A nova legislação também aumenta a pena de reclusão nesses casos – antes, era de 1 a 3 anos; atualmente, fixou-se o período entre 2 e 5 anos. Vale ressaltar a diferença entre os dois termos: enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo.

A mudança na lei é um passo importante na luta antirracista, já que, muitas vezes, as ofensas são feitas em tom de piada, e o autor do crime alega que não quis ofender. Com a lei, a injúria racial se torna um crime inafiançável e imprescritível, ou seja, sem prazo máximo para que os autores sejam punidos pela Justiça.

A nova lei também enquadra crimes cometidos em locais destinados a atividades religiosas, artísticas, culturais ou esportivas, como teatros e estádios de futebol. Quem for condenado vai ser proibido de frequentar os locais por até três anos.

No “cercadinho de Orlando”, além de empresários, há pastores; manifestantes que participaram de acampamentos erguidos em frente aos quartéis-generais do Exército em Belo Horizonte e em Brasília, por exemplo; e brasileiros que trabalham nos arredores e até mesmo em cidades mais distantes, como Nova York, Boston e Chicago. Alguns americanos e judeus também tietam Bolsonaro.

Mesmo com a intensa movimentação na rua todos os dias, há turistas que passam férias no local e não fazem ideia de quem causa toda aquela aglomeração. Frequentemente hóspedes perguntam: “Qual celebridade está no local?”. O condomínio é conhecido por receber atletas, atores e personalidades em geral, nacionais e internacionais.

Toda a movimentação também é acompanhada por policiais americanos que, vez ou outra, aproveitam para tirar fotos com o ex-presidente. Repórteres e fotógrafos, entretanto, não costumam ser tão bem recebidos no local. A imprensa em geral é tratada pelos bolsonaristas como manipuladora e associada à esquerda. Seguranças retiram do local os poucos militantes contrários ao governo Bolsonaro que protestam em frente ao endereço.

Com esse grande fluxo de pessoas, nem sempre é possível atender à orientação de organizar os apoiadores em fila, na calçada, e não obstruir a pista. Por isso, a administradora do condomínio eventualmente precisa advertir a equipe do político.

Quando não está distribuindo autógrafos, Jair Bolsonaro vive uma rotina pacata, que inclui compras no mercado e almoços em redes de fast-food e self-service. As andanças são registradas por seguranças e apoiadores que o encontram nos estabelecimentos. Desde dezembro nos EUA, o ex-presidente tenta passar a imagem de homem do povo, com hábitos simples. No entanto, o cardápio do último jantar de Bolsonaro como chefe do Executivo, em 31 de dezembro, teve filé ao molho madeira, arroz com amêndoas, bacalhau gratinado com natas, salada de camarão com brócolis e maçã-verde, e farofa de biscoito com bacon.

No Instagram, a chef Karlota Fonseca, responsável pela ceia de Bolsonaro, publicou o item mais cobiçado da refeição: um pernil de 14 quilos assado no forno por cinco horas.

 

Conhecida em Orlando como “chef das estrelas”, a cozinheira paraibana Karlota trabalha nos Estados Unidos e já serviu buffets a Anitta, Simone Mendes, Larissa Manoela e Claudia Leitte, entre outros famosos.

Apesar de morar a poucos metros do parque aquático e da área de lazer do resort, Bolsonaro nunca foi visto por lá. O conglomerado de luxo conta, ainda, com academia, dois restaurantes e lojas de conveniência. Há casas disponíveis para aluguel a quem deseja se hospedar no complexo residencial. Entretanto, os futuros visitantes precisarão desembolsar entre US$ 517 e US$ 1 mil, o equivalente a R$ 2,7 mil e R$ 5,2 mil.

Quem almeja se hospedar no Encore Resort at Reunion deve reservar alguma residência por, no mínimo, três noites. Em sites de hotéis, o condomínio de luxo é avaliado com cinco estrelas. Em 2020, o complexo integrou a lista do Travelers’ Choice, do TripAdvisor. Feito de carro, o percurso entre o endereço e os parques temáticos Walt Disney World e Animal Kingdom leva aproximadamente 15 minutos.

Para controlar o check-in e o check-out dos hóspedes, cada casa do complexo contém um QR Code que libera a entrada no portão principal. No site oficial, há uma descrição a respeito das residências que compõem o Encore, definido como “principal marca de resorts de casas de férias”. “Todos os nossos tipos de unidades são construídos com o mesmo alto padrão para proporcionar uma experiência de classe mundial aos nossos hóspedes”, explicam na página.

O site também anuncia a disponibilidade de chef ou barman particular. Como seria de se esperar, o condomínio de luxo é fechado, com segurança durante 24 horas, nos sete dias da semana.

A temporada de Jair Bolsonaro nos Estados Unidos pode estar na reta final. Em entrevista concedida ao jornal americano Wall Street Journal, o político revelou que planeja voltar ao Brasil em março para liderar a oposição ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Bolsonaro defendeu uma articulação com o Congresso e com os governos estaduais para promover pautas como o combate ao aborto, ao controle de armas e a políticas que alega serem contrárias aos “valores familiares”. “O movimento de direita não está morto e continuará vivo”, pontuou o ex-presidente.

Enquanto não embarca de volta para Brasília, o ex-mandatário segue hospedado no resort de luxo, recebe visitas diárias, passeia pela cidade e faz palestras em eventos para os apoiadores. As ministrações já ocorreram em teatros e igrejas evangélicas de Orlando e Miami. Em média, os ingressos variam de US$ 10 e US$ 40 (R$ 52 a R$ 207, segundo cotação de 17 de fevereiro de 2023). Para ficar mais perto do político, é ofertado o ticket para a área VIP, no valor de US$ 50 (R$ 258).

Em seus discursos em solo norte-americano, Bolsonaro também fala de assuntos pessoais, como o casamento com Michelle e o seu salário. Segundo ele, os vencimentos como presidente da República, de R$ 33 mil, são baixos.

“Alguém sabe quanto foi o meu salário bruto em dezembro do ano passado? R$ 33 mil. Dá aí US$ 6 mil. Compensa? Você não vai para lá (Presidência) para ser recompensado financeiramente. Para ministro, o salário é igual”, afirmou durante um culto na igreja New Hope Church, em Orlando.

E, por causa da rotina como chefe da nação, às vezes, Bolsonaro “nem lembrava que tinha esposa”.

Metrópoles