Bolsonaro da Casa de Rui Barbosa

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Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Pelo menos 43 normas da última gestão da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) sob o governo Jair Bolsonaro (PL) devem ser revogadas total ou parcialmente nos próximos meses. É o que promete o novo presidente da instituição, Alexandre Santini, que acaba de assumir. Entre elas, está a concessão da medalha que leva o nome do patrono da fundação à ex-presidente da Casa Letícia Dornelles, indicada para o cargo pelo deputado bolsonarista Marco Feliciano (PL-SP). Os servidores ainda falam em “desmonte” da fundação, com demissões, perseguições e cortes de verba. A morte de Rui Barbosa completa 100 anos nesta quarta.

Letícia é acusada de alterar as regras da Medalha Rui Barbosa para permitir uma concessão a si mesma. Ela nega. “Alterei a portaria porque na gestão anterior tinham concedido a medalha a vigia, dono de delicatessen, contador da ex-diretora”, afirmou a ex-presidente ao Estadão. “Achei que era bagunça. Tinha medalha para servidor que fez concurso recentemente, sem qualquer fator relevante na carreira. Assistente da presidente recebeu. Coloquei mais exigências.”

A Medalha Rui Barbosa não foi concedida em 2020 e 2021, por causa da pandemia. Em 2019, último ano de concessão antes de 2022 – quando Letícia foi a única agraciada -, a comenda foi outorgada ao juiz da Corte Internacional de Justiça, em Haia, Antônio Augusto Cançado Trindade; à jornalista Dorrit Harazim; e à pesquisadora de literatura de cordel Sylvia Nemer. Na ocasião, a FCRB estava sob a presidência interina de Lucia Maria Velloso de Oliveira. Letícia Dornelles seria nomeada pouco depois, em 30 de outubro.

Localizada em um terreno arborizado e preservado em Botafogo, bairro da zona sul carioca, a Fundação Casa de Rui Barbosa foi a primeira casa-museu do Brasil. O imóvel foi comprado pelo governo após a morte de Rui e, em 1927, virou o Museu Rui Barbosa. Em 1966, virou fundação, voltada para documentação, pesquisas e debates.

Atualmente, a FCRB – que no novo governo foi integrada ao Ministério da Cultura – tem um Arquivo Histórico Institucional com 60 mil documentos que pertenceram a Rui Barbosa, um Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, um Centro de Memória e Informação, um Centro de Pesquisa, com setores de: Estudos Ruianos, Direito, Filologia, História, Políticas Culturais e uma biblioteca. Abriga ainda milhares de documentos que pertenceram a pessoas que foram ligadas a Rui. Tem também um mestrado em Memória e Arquivo. Seus portões são abertos ao público – é comum ver famílias passeando por seus jardins.

O “revogaço” que a nova administração prepara deverá abranger de regulação de postagens em redes sociais ao funcionamento do Comitê Interno de Governança, passando por normas em viagens internacionais e controle de assiduidade. Competências da Diretoria Executiva, Política de Pesquisa e nova Política de Editoração também estão na lista. Também há na FCRB quem advirta para a necessidade de novo concurso público, para preencher os lugar de servidores aposentados.

A polêmica sobre a “autocondecoração” é apenas uma entre as muitas que envolveram a Casa de Rui Barbosa a partir da nomeação de Letícia. Servidores e a nova direção apontam como causa um suposto plano de desmonte da instituição, com trocas constantes de chefias, demissão de todos os chefes do Centro de Pesquisas, cortes de verbas e presumidas perseguições a funcionários. Já Letícia, que diz ter apoio de alguns integrantes da Casa, atribui as acusações a uma suposta “militância muito difícil de lidar”. Também aponta o que chama de baixa produtividade de funcionários, além de reclamar de supostas ameaças. Ela também afirma ter descoberto irregularidades, mas diz não poder citar nomes.

Em 2022, o orçamento executado da fundação, de acordo com números da Divisão de Planejamento e Orçamento, excluídas as despesas com pessoal, foi de R$ 5.759.055,00 – execução de 84,25%. A cifra e a proporção foram as mais baixas da série, iniciada em 2017, quando foram executados R$ 6.932.698,95 (98,58%). No governo Bolsonaro, nesse campo, o primeiro ano foi o melhor, com R$ 6.478.232,29 – 99,26% de execução. Nos três anos anteriores, os gastos ficaram abaixo disso. Para 2023, são previstos R$ 12 milhões.

“O que aconteceu aqui foi um projeto de desconstrução, de asfixia orçamentária”, afirma o atual presidente da fundação. “Não era transformar a Casa em um think-tank conservador. Era uma arquitetura da destruição, com uma dose grande de improviso.”

O último concurso público para a Casa ocorreu em 2013. Sua validade foi até 2017. O quadro de funcionários, que era de 120 pessoas em 2015, caiu para 80 no ano passado.

Servidores descreveram, em denúncia ao Ministério Público Federal (MPF) as “exonerações, nomeações, relotações e dispensas” de funcionários da FCRB – em muitos casos, sem aviso aos exonerados, que souberam pelo Diário Oficial. O processo começou em 7 de janeiro de 2020.

 

“Em um primeiro momento, foi exonerada toda a cúpula do Centro de Pesquisa, seu diretor e os chefes dos Setores de Políticas Culturais, de História, de Direito, Ruiano e de Filologia”, descreve o texto encaminhado ao MPF. “Em seguida, foram exoneradas a chefe da Divisão de Planejamento e Orçamento, a assistente da presidência e a chefe da Divisão de Difusão Cultural. Três outros servidores, sendo dois deles chefes substitutos, foram dispensados da substituição da chefia e relotados em outros setores.”

O historiador Antônio Herculano Lopes, um dos exonerados, disse ao Estadão que atualmente restam apenas oito dos 30 profissionais que trabalhavam no Centro de Pesquisas da Fundação antes da gestão bolsonarista. Diante do ambiente que consideraram hostil na então nova administração, os profissionais procuraram outros rumos. Alguns se aposentaram, outros pediram transferência. Houve também servidores “devolvidos” pela direção da FCRB ao Ministério do Planejamento, esvaziando ainda mais o Centro de Pesquisas.

O que aconteceu aqui foi um projeto de desconstrução, de asfixia orçamentária”
Alexandre Santini, presidente da FCRB

Segundo Lopes, a então presidente fez as exonerações “sem ter ninguém para colocar nos lugares” que ficaram vagos. “Foi político mesmo”, afirmou. “Ela me exonerou no início de janeiro e só nomeou a nova diretora de Pesquisas em maio ou junho.”

Uma ex-funcionária, que conversou com o Estadão sob anonimato, reconheceu que cargos de confiança não são permanentes e podem ser retirados, mas reclamou da falta de uma conversa prévia às exonerações. Ela afirmou que a Casa tinha uma tradição de lidar com visões políticas diferentes, em harmonia. A antiga direção, de acordo com a ex-servidora, trouxe para a Casa um relacionamento difícil, gerando um ambiente “adverso, complicado”, no qual era necessário medir “gestos e textos”. Com problemas de saúde que atribuiu ao clima no trabalho, poucos meses após as exonerações ela se aposentou.

No caso do cientista político Christian Lynch, funcionário da Casa, a pressão veio do então secretário especial de Cultura, Roberto Alvim. Depois de nomear o pesquisador para um cargo de confiança na instituição, ele voltou atrás, por causa de críticas do nomeado a Bolsonaro, e o exonerou, anunciando a medida no Twitter. O próprio Alvim perdeu o cargo dias depois, acusado de imitar o ministro da Propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels. Lynch está se reintegrando à Casa.

Às denúncias de funcionários ao Ministério Público Federal (MPF) e à Procuradoria-Geral da União, corresponderam iniciativas de Letícia para abertura de investigações – além do TCU, na Corregedoria interna e até na Polícia Federal – contra servidores da Casa e mesmo pessoas de fora da instituição que a criticaram. A então presidente alegou ter sido ameaçada, assim como parentes seus, e também fez acusações de calúnia e difamação. Os alvos foram servidores da FCRB e pelo menos dois cidadãos, que a criticaram em redes sociais – ambos jornalistas aposentados.

O presidente da Associação de Servidores da Fundação Casa de Rui Barbosa, Leandro Jaccoud, foi acusado de ameaçar Letícia, por causa de uma carta em que a entidade a advertia sobre sua atuação e avisava que poderia ter consequências. A então presidente também afirmou que um homem parecido com Jaccoud a seguira no Metrô, o que ele nega. Uma Investigação Preliminar Sumária (IPS) foi aberta na FCRB contra Jaccoud por sua participação em um protesto contra as exonerações, em 13 de janeiro de 2020, e foi anexada aos autos da investigação da PF.

Ao Estadão, Letícia Dornelles afirmou que, na concessão da Medalha Rui Barbosa a si mesma, foi “ingênua” e “não viu maldade”. Ela afirmou ter mexido na portaria por orientação de um funcionário, que lhe contou que a comenda era chamada de “merdalha” (sic).

A ex-presidente reconheceu ter recebido o apoio do deputado Marco Feliciano, inclusive quando foi cogitada a incorporação da FCRB ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), proposta que acabou arquivada.

A Casa tem uma militância muito difícil de lidar”
Letícia Dornelles, ex-presidente da FCRB

Segundo ela, as exonerações no Centro de Pesquisas ocorreram por determinação de Roberto Alvim. Letícia afirmou também ter sido surpreendida pela decisão. O Estadão não conseguiu localizar o ex-secretário.

“Eles ganham cerca de R$ 18 mil, R$ 15 mil por mês. O cargo era decorativo praticamente porque havia setor de duas pessoas, sendo um chefe. E havia queixa de baixa produtividade e baixa frequência. Quando eu entrei havia um PAD (Procedimento Administrativo Disciplinar) sobre isso com relação a dois servidores da pesquisa.” Letícia afirmou que os procedimentos acabaram arquivados por erros na sua abertura.

Uma avaliação de desempenho de servidores da Fundação Casa de Rui Barbosa, referente ao pedido de 1.º de junho de 2018 a 30 de maio de 2019, à qual o Estadão teve acesso, mostra que quase todos os servidores tiveram notas acima de 90. Apenas quatro (3,17% em uma lista de 126 nomes) ficaram abaixo. Um deles teve nota 89,48 e outro, 85,45. Houve ainda um 73,38 e um 63,62.

A ex-presidente também afirmou ter pedido ao Tribunal de Contas da União (TCU) dez auditorias, que teriam encontrado irregularidades em contratos. “Mas não posso mostrar, seria crime, porque tem os nomes das pessoas”, disse.

Estadão