Exército denuncia parceria de PMs do Rio e traficantes

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Foto: Dida Sampaio/Estadão

Os generais Sérgio Etchegoyen, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Adriano Pereira Júnior, ex-comandante militar do Leste e responsável pela ocupação dos Complexo do Alemão, no Rio, afirmaram que policiais militares do Rio transportavam traficantes de drogas em suas viaturas para que pudessem se locomover em segurança durante ações do Exército na cidade. O Exército foi responsável por 36 ações de Garantia de Lei e Ordem (GLO) no Rio de 1992 até a intervenção federal, em 2018.

As declarações dos dois generais fazem parte do conjunto de 16 entrevistas de militares – 13 generais, 2 almirantes e um coronel do Exército – para o livro recém-publicado Forças Armadas na Segurança Pública: A visão militar (editora FGV, 327 págs.), organizado pelos pesquisadores Celso Castro, Adriana Marques, Verônica Azzi e Igor Acácio. As entrevistas foram feitas entre 2020 e 2022.

As entrevistas dos generais sobre as ações de GLO surgem no momento em que se discute no governo de Luiz Inácio Lula da Silva a retirada dessa atribuição das Forças Armadas, conforme proposta do deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP). Apesar das críticas a essas operações e ao emprego dos militares no papel de polícia, as cúpulas das Forças defendem a manutenção das GLOs e negociam um projeto alternativo por meio do Ministério da Defesa: a proibição de militares da ativa de exercer cargos civis, como forma de evitar a partidarização de parte da caserna, observada no governo Bolsonaro.

Em sua entrevista, o general Adriano conta episódios de corrupção do aparelho policial. Segundo ele, uma vez sua tropa recebeu a informação de que o traficante Celsinho da Vila Vintém saía de uma favela para outra comunidade dentro de um carro da polícia. “O carro ia lá, ele embarcava no carro com os PMs…. Ninguém para o carro da PM. Tinha de passar, algumas vezes, por áreas que os militares poderiam estar fazendo bloqueio. E nós não vamos fazer inspeção em carro da Polícia Militar, não é?”

O cenário teria se repetido anos depois no Complexo do Alemão, onde a força de pacificação ficou 583 dias ocupando as comunidades da região, a partir de 28 de novembro de 2010. No primeiro momento, coube ao Exército a tarefa de fazer o cerco do complexo. Quem entrou na área foram os homens das polícias. Adriano comandava então o CML. Disse o general:

“O que estava acontecendo lá dentro… Nós temos informações de policiais que fizeram ilegalidades. É bem diferente. Eu não posso, por um ou dois elementos, culpar uma instituição. A Polícia Militar é uma instituição muito, muito grande. Houve desvios? Houve. Os militares nossos que estavam lá sabiam? Sabiam. Mas não podiam interferir. A operação era deles. Lá dentro era deles; o cerco era nosso. Mas tem histórias sim, de gente da polícia cavando dentro do barraco, e que foram encontrados… de viatura da PM entrando.”

Etchegoyen descreveu a operação de retomada do Complexo do Alemão aos pesquisadores, afirmando: “Vocês, claro, lembram daquela cena dos bandidos correndo, de arma na mão, fugindo do Alemão? Aqueles foram os que fugiram naquele momento. Outros fugiram em carro da polícia… Então é uma coisa muito difícil. Não é uma coisa simples trabalhar naquilo.”

O balanço feito por Etchegoyen das operações no Alemão e na Maré é comum entre os militares e políticos: “enxugar gelo”. “Entra o Exército lá, aperta, contém o cara. E o Estado, que tem de vir depois para fazer o que lhe compete….As pessoas continuam condenadas ao esgoto a céu aberto, à falta de saneamento básico, à falta a de educação, e continuaram tiranizadas pelo tráfico.” Ou seja, o problema do Rio, segundo o general, é que 1,5 milhão de pessoas vivem “tiranizadas pelo tráfico e são absolutamente invisíveis”.

Etchegoyen chamou de tragédia a situação da Segurança no Rio. “O sujeito chega lá na Rocinha e diz: ‘Sou candidato a vereador e quero 300 votos aqui’. ‘Ok: custa 300 mil reais. Paga 150 agora e 150 quando apurar’. E ele vai ter os 300 votos É assim que funciona. A pessoa tem de consumir o gás que eles (criminosos) determinam, a água que eles determinam, a gatonet que eles determinam, o filho está disponível, e a filha e a mulher, a mãe ou sei lá quem não vai estar se o cara pagar.”

A maioria dos generais fez um balanço crítico dos resultados das operações de GLO e das dificuldades enfrentadas pela tropa. Sérgio José Pereira, braço-direito do interventor Walter Braga Netto e secretário da Intervenção Federal no Rio, afirmou: “Operação de GLO naqueles complexos do Rio, eu não gostava porque havia muitos tipos de exposição que não são claras para quem está fora do sistema. A família da minha mãe é muito humilde, mora ali do lado do Chapadão. Conheço o Chapadão como a palma da minha. Minha prima morava no Chapadão: O bandido tirou ela da casa e falou: ‘Pode ir embora’. Ficou sem casa.”

O general completou: “Ninguém dos direitos humanos foi procurar para devolver a casa dela. Minha infância eu passei em Guadalupe. Tenho três tios, irmãos de minha mãe, que moram próximo do Chapadão. Não vou visitar eles. Meus filhos reclamavam, diziam assim: ‘Você vai andar de carro blindado, mas e os tios? E os primos? As pessoas sabem que você apareceu na televisão’. Eu fugia de uma câmera de televisão como quem fugia… Vinha a televisão, eu escondia a minha cara. Meus filhos preocupados com primos e tios. Eles moram lá desde que minha mãe nasceu. Vai fazer o quê?” O Chapadão é área do Comando Vermelho.

Para o general, a Segurança Pública do Rio “tem jeito sim”. “Só que vai levar tempo. Levou muito tempo para esculhambar”. A exemplo dos seus colegas, o ex-ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, mostra o desconforto dos militares com a proliferação de GLOs. “A gente encara como missão. Mas realmente GLO, principalmente no território brasileiro, não é uma atividade-fim nossa. Nossa missão principal é defender a Pátria.” Ele completa: “O duro é que você faz um esforço muito grande, mas depois que você sai, o resultado não aparece mais. Volta ali o que era antes.”

Além de primeiro ministro da Defesa do governo de Jair Bolsonaro, Azevedo e Silva foi comandante militar do Leste e chefe do Estado-Maior do Exército, cargo que ocupava durante a intervenção federal no Rio. De acordo com ele, a intervenção deixou pronto um planejamento de médio e longo prazo para a Segurança Pública carioca e reequipou suas polícias. “Mas, em seguida, na próxima eleição, inclusive foi extinta a Secretaria da Segurança Pública. Quer dizer, esse planejamento ficou no ar.”

A descontinuidade administrativa foi constatada também pelo general Richard Fernandez Nunes, que foi secretário da Segurança Pública durante a intervenção. A ela, o general relacionou o fato de os mandantes da morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) terem ficado impunes. De acordo com Richard, o delegado Giniton Lages tinha um planejamento na investigação que levou, primeiro, à prisão dos executores do crime. Quando ia atrás dos mandantes, acabou afastado do caso pela gestão do governador Wilson Witzel.

Os relatos dos militares reunidos pelos pesquisadores mostram não apenas a visão dos oficiais a respeito das Operações de Garantia de Lei e da Ordem, mas também os desafios enfrentados no relacionamento com o mundo civil e com a imprensa. Braga Netto, por exemplo, se refere à TV Globo como “aquela rede lá”, como se ela fosse um ser inominável à moda do que se faz na esquerda com Bolsonaro. Já Etchegoyen diz: “Nós tínhamos levantado dois óbices ao sucesso no Rio: a opinião pública e a imprensa do Rio. Elas podiam anular qualquer tentativa de resolver o problema do Rio. E foi exatamente o que aconteceu.”

O general do GSI fez com a imprensa uma generalização como alguns de seus críticos fazem a respeito dos militares: “Na minha opinião, a imprensa hoje é um partido, não no sentido organizacional, mas no sentido de que ela é parte da discussão, ela não faz mais a intermediação entre o fato e a opinião pública”. A maioria das críticas dos generais sobra para o mundo civil. Poucas tratam de suas falhas. Talvez porque as lições aprendidas foram as militares – as operacionais e as táticas. E não as políticas. E entre estas devia estar a de que é uma vergonha e uma tragédia uma Nação usar o seu Exército para a manutenção da ordem pública.

Estadão