Falta muito para desmilitarizar a Abin

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Foto: Antônio Cruz

Na última quarta-feira (1º), o governo adotou uma decisão inédita no funcionamento do aparato de inteligência estatal no Brasil. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), até então vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), passou ao controle da Casa Civil. A transferência marcou o fim do controle de militares sobre a inteligência, uma das heranças institucionais da ditadura militar de 1964. O coronel da reserva Marcelo Pimentel, com especialização em inteligência, avalia que esse é apenas o início do processo de desmilitarização da Abin.

A Abin é o sucessor do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de inteligência criado durante a ditadura e utilizado como parte de seu aparato de repressão. O antigo serviço era encarregado de identificar possíveis opositores ao regime, espionar políticos e assessorar politicamente o presidente da República. O presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu o SNI, e em seu lugar criou a Abin, encarregada de alinhar os demais órgãos nacionais de inteligência, identificar ameaças ao Estado e oportunidades internacionais e nacionais.

Marcelo Pimentel, especialista em inteligência avançada pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE) e ex-coordenador de agências de inteligência do Exército dentro e fora do Brasil, explica que a mera conversão do SNI para a Abin não extinguiu a influência militar sobre o órgão. A nova agência permaneceu sob chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão com status de ministério encarregado de assessorar o presidente em assuntos militares.

A transferência para a Casa Civil, de acordo com o coronel, resolve parte do problema da militarização, garantindo que a cúpula da Abin passe a estar alinhada a interesses civis. A posição é compartilhada pela União de Profissionais de Inteligência de Estado da Abin (Intelis), que classificou a decisão como “um marco histórico de evolução na Inteligência de Estado” e um gesto de “compromisso do Poder Executivo com o Estado de Direito e a democracia”.

Essa mudança, porém, não resolve a questão da militarização da Abin. Marcelo Pimentel aponta para dois pontos de influência de militares sobre a agência. O primeiro é uma questão interna, simples de resolver: a mudança do SNI para a Abin foi feita mantendo muitos quadros militares no órgão. Para isso, o remédio proposto é a realização de concursos para que civis assumam essas funções.

Um outro lado é externo, e mais complexo. Pimentel explica que a Abin atua dentro de um sistema maior, o Sistema Brasileiro de Inteligência (Abin). “O Sisbin funciona como um sistema de engrenagens, em que a Abin é o eixo central e seu movimento coordena os outros sistemas de inteligência governamentais. Nisso, temos os sistemas de inteligência do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do Ministério da Defesa”, descreve.

Nesse sistema, idealmente a Abin não teria contato direto com os sistemas de inteligência das três forças armadas. A interação se daria com o intermédio do sistema do Ministério da Defesa. Este, porém, não conta com estrutura para fazer essa intermediação, e todas as “engrenagens” ao redor atuam em contato direto.

Essa conexão direta com as Forças Armadas acaba por impactar a atuação da própria Abin. “Essa troca direta não é apenas de informação, o que é normal de acontecer, mas na própria mentalidade do sistema e na formação do pessoal. Por consequência, a gestão interna da Abin é muito militarizada”, relatou.

A influência militar dentro da Abin, conforme conta o especialista, não tem apenas impacto simbólico, mas afeta a própria lógica de atuação da agência. “A nossa lógica [do Exército] é sempre a de buscar inimigos, porque a nossa inteligência serve para operações militares voltadas para a defesa externa. Quando empregamos muito a força em assuntos internos, em especial em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a própria inteligência civil acaba absorvendo essa lógica de espionagem externa”, considera.

O efeito oposto também acontece com essa mistura: grupos de interesse civis acabam se tornando alvo de análise e espionagem por parte da inteligência militar. Movimentos sociais, cujo acompanhamento é idealmente feito por agências civis dentro de uma lógica de análise de liberdade democrática, passam a se tornar alvos de espionagem das forças armadas e vistos como ameaças.

Essa mistura de funções e mentalidades acaba também afastando a agência de sua vocação institucional. “A Abin tem uma vocação de inteligência internacional. Ela é encarregada de obter dados de inteligência que sejam importantes para o presidente da república, de defender os interesses do Brasil no cenário internacional”.

Depois de mudar a subordinação da Abin, o governo indicou para sua coordenação o nome de Luiz Fernando Corrêa, ex-diretor geral da Polícia Federal. A Intelis se pronunciou contrária à indicação, defendendo que seja substituído por um servidor de carreira. “As quatro ocasiões em que a Abin foi dirigida por quadros estranhos à área de inteligência de Estado foram marcadas por crises ou desvios de atribuição”, relembrou a associação em nota.

Marcelo Pimentel, apesar de não duvidar da competência do nome indicado, concorda que não seja o quadro ideal para coordenar a agência. “A área de atuação dele era em inteligência de segurança, mas agora vai atuar em uma inteligência de Estado. Não acho que seja o momento de falar de ‘policialização da Abin’, mas não deixa de ser um risco”, afirmou.

Assim como a Intelis, o coronel defende a indicação de um nome interno para a coordenação da Abin. Os passos dados até então, porém, já marcaram o início de um processo de desmilitarização. “A mudança de subordinação para a Casa Civil mas com um policial federal na chefia pode ter sido o passo possível até agora. Mas ainda não é o passo ideal”, ponderou.

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