Pacheco está enfraquecendo Lira
Foto: Ricardo Stuckert/PR
A disputa entre os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pelo controle do rito de tramitação de medidas provisórias (MP), inclui o Palácio do Planalto. Oficialmente, o Executivo considera essa uma questão interna das duas Casas do Congresso Nacional. A decisão de Pacheco de ressuscitar as comissões mistas que avaliam a matéria — com apoio de todas as lideranças no Senado, incluindo as legendas de oposição — representa o mais grave revés de Lira desde que perdeu o controle do chamado orçamento secreto.
Político mais poderoso ao longo dos quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro (PL-RJ), o deputado alagoano luta para manter seu protagonismo no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) amparado na influência que exerce sobre o Centrão, bloco parlamentar majoritário de centro-direita que se alimenta de recursos liberados sob a forma de emendas ao Orçamento da União, rigorosamente controladas pelo presidente da Câmara.
O Correio apurou com diversas fontes — informações corroboradas pelos fatos dos últimos dias — que o governo atuou diretamente para enfraquecer o poder de Arthur Lira, antes de se ver como refém do presidente da Câmara em votações importantes, como ocorreu com o governo anterior. A ala palaciana que pregava uma política de conciliação, apoiada por parte da bancada de deputados federais, já vinha perdendo força nas últimas semanas, mas a necessidade de aprovar 13 medidas provisórias baixadas pelo presidente Lula logo após a posse, em janeiro — entre elas as que reestruturam a Esplanada dos Ministérios, o novo Bolsa Família e o relançamento do Minha casa, minha vida —, exigiu uma tomada de posição. Uma reunião que durou cerca de três horas, fora da agenda pública, entre o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e o líder da Maioria no Senado e inimigo número um de Lira, Renan Calheiros (MDB-AL), na última terça-feira, no Palácio do Planalto, selou a estratégia.
A questão de ordem apresentada por Renan, um dia depois, no Plenário do Senado, estava pronta havia três semanas, mas o governo ainda esperava negociar uma solução consensual para o rito das MPs, com uma proposta de divisão entre as duas casas sobre o início da tramitação. Com a posição inflexível de Arthur Lira em manter o trâmite extraordinário que vigorava desde a pandemia, de análise das MPs diretamente pelo Plenário e com relator indicado pelo próprio presidente da Câmara, os líderes da bancada governista no Senado convenceram Rodrigo Pacheco de que não dava mais para adiar a retomada dos ritos previstos na Constituição, o que significava revogar o acordo de tramitação firmado na pandemia e reabilitar as comissões mistas, formadas por 12 deputados federais e 12 senadores. Como estavam em jogo prerrogativas constitucionais do Senado, não foi difícil convencer os partidos, incluindo os da oposição, a avalizar a questão de ordem.
A decisão do Senado, formalizada por Pacheco na última quinta-feira, escancarou a crise. No dia seguinte, mesmo com o presidente da República diagnosticado com broncopneumonia, Lira foi pessoalmente ao Palácio do Planalto. O chefe do Executivo havia reunido horas antes o Conselho Político do governo para avaliar a crise. Os dois se encontraram por cerca de uma hora, e o presidente da Câmara reafirmou que o Planalto terá dificuldade para aprovar as medidas provisórias que estão na fila. Por enquanto, a decisão do Palácio é deixar que o próprio Congresso resolva o imbróglio.
Lira aposta na suposta fragilidade da base aliada do Planalto. No dia 6, disse, na Associação Comercial de São Paulo, que “o governo ainda não tem uma base consistente nem na Câmara nem no Senado para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matéria de quórum constitucional”. No caso das comissões mistas para análise de MPs, porém, a situação não seria tão desconfortável, principalmente no Senado. De acordo com a divisão de forças no Plenário, o bloco majoritário “Democracia”, formado por MDB, União Brasil, Podemos, PDT, PSDB e Rede, indicaria cinco dos 13 membros do colegiado (12 titulares e um suplente). O bloco “Resistência Democrática”, com PSD, PT e PSB, mais quatro. Os dois blocos de oposição, com PL, PP e Republicanos, teriam quatro assentos apenas.
Fortalecida na formação do governo Lula e capitaneada pelo líder da Maioria, Renan Calheiros, e pelo líder do MDB, Eduardo Braga (AM) — com a anuência discreta do líder do governo, Jaques Wagner (PT-BA) —, a bancada de senadores da base aliada aumentou a pressão para enfraquecer a posição de Lira. Incomodado, o presidente da Câmara passou a explicitar sua insatisfação com o movimento dos senadores governistas. Um dos gestos foi recusar o convite do presidente Lula para integrar, ao lado de Pacheco, a delegação brasileira que iria à China, no sábado — a viagem foi desmarcada por causa da doença que acometeu o chefe do Executivo.
Pacheco ainda tentou uma última rodada de negociação, ao aceitar um convite para um almoço privado com Lira na residência oficial do presidente da Câmara. Segundo apurou o Correio com mais de uma fonte, o encontro foi “um fiasco”. Pacheco foi embora sem almoçar.
Arthur Lira sentiu o golpe. Logo após Renan Calheiros apresentar a questão de ordem à Mesa do Senado, na noite de quarta-feira, o presidente da Câmara deixou seu gabinete e seguiu para o carro oficial. Antes de embarcar, a reportagem do Correio perguntou como ele avaliou a questão de ordem. Irritado, respondeu com outra pergunta: “Você acha que o Senado é sozinho, que o Senado pode decidir só?”.
No dia seguinte, o presidente do Senado anunciou a decisão de retomar o rito de tramitação previsto na Constituição, com apoio de todos os partidos com assento na Casa. “Encerrada a pandemia, felizmente, não havendo mais o estado de emergência, revogado inclusive pelo Poder Executivo, havia a necessidade, obviamente, da retomada da ordem constitucional e do cumprimento da Constituição no rito das medidas provisórias, isso com uma obviedade muito grande”, declarou o presidente do Senado ao anunciar a decisão da Mesa. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner, um dos petistas mais influentes da base governista, sintetizou: “Mesmo estando frustrados por não ter tido o acordo, fomos unânimes no acolhimento da questão de ordem feita. E que se proclame a instalação das comissões”, disse o senador.
Em uma inusual entrevista coletiva no Salão Verde, convocada simultaneamente à que o presidente do Senado concedia, poucos metros adiante, no Salão Azul, sobre a decisão anunciada em Plenário, Arthur Lira desafiou Pacheco. Disse que a decisão foi “truculenta” e ameaçou: “Essa questão de ordem cedida, pelo que eu entendi, na reunião de líderes, não vai andar um milímetro na Câmara dos Deputados, e o prejuízo vai ser para o governo atual”. É nesse clima que o presidente Lula, mesmo convalescendo da pneumonia, tentará arbitrar, nesta semana, uma saída negociada antes que se expirem os prazos de validade das MPs estratégicas.
A crise entre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), tem um personagem-chave e uma disputa política originada em Alagoas que transbordou para o cenário nacional ainda na eleição presidencial de 2022. Principal adversário político de Lira na seara alagoana, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) acumula poder desde que Luiz Inácio Lula da Silva enterrou o sonho de reeleição de Jair Bolsonaro (PL), que contava com o apoio irrestrito do presidente da Câmara e principal líder do Centrão. Lira foi reeleito deputado federal e manteve em Brasília o ringue da peleja.
Na montagem do governo, Renan emplacou o filho no comando do Ministério dos Transportes. Ex-governador de Alagoas e senador eleito, Renan Filho (MDB) comanda uma das pastas com maior poder de investimentos da Esplanada dos Ministérios. No Senado, Renan pai foi indicado para a Liderança da Maioria, o que dá a ele palanque e espaço para negociar temas de interesse do presidente Lula. É com esse cacife que o ex-presidente do Senado enfrenta o adversário Arthur Lira.
Os embates se dão quase que diariamente, em declarações ácidas tanto no Congresso quanto nas redes sociais. No dia 22, Calheiros chamou Lira de “tiranete” em sua conta no Twitter, ao escrever que o adversário “quer rasgar a Constituição”. Lira respondeu na mesma postagem que “o bom da liberdade de expressão é que permite até os bobos se manifestarem, embora, no geral, se comportem de maneira ridícula, panfletária e incendiária”.
Ao chamar Renan para uma conversa no Palácio do Planalto, na semana passada, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, traçou os cenários possíveis para a crise que pode afetar a tramitação de medidas provisórias essenciais para o governo, como as que criam ministérios e reeditam os programas Bolsa Família e Minha casa, minha vida. Ele recebeu do senador a garantia de que, se as comissões mistas forem instaladas, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que também preside o Congresso Nacional, tem a prerrogativa de indicar os deputados do colegiado caso Lira se negue a fazer as indicações.
Essa não é a primeira vez que Renan Calheiros enfrenta um presidente da Câmara dos Deputados. Quando presidiu o Senado pela segunda vez, entre 2013 e 2017, o parlamentar alagoano antagonizou com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que era do mesmo partido, o MDB, diversas vezes. Renan via com preocupação a determinação de Cunha em fazer avançar o processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff e acusava o presidente da Câmara de “tumultuar” o processo legislativo. Depois do impeachment, Eduardo Cunha acabou enfrentando, ele próprio, um processo de cassação por ter mentido na CPI que apurava corrupção na Petrobras, investigada no âmbito da Operação Lava-Jato. O deputado fluminense perdeu o mandato em setembro de 2016, um mês depois de o Congresso tirar Dilma Rousseff da Presidência da República.
Cronologia da guerra das MPs
6 de maio
Lira diz em São Paulo que o governo “ainda não tem uma base consistente nem na Câmara nem no Senado para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matéria de quórum constitucional”.
21 de maio
Lira recusa convite de Lula para integrar a delegação brasileira que iria à China.
Ministro Alexandre Padilha se reúne, no Palácio do Planalto, com o líder da Maioria no Senado, Renan Calheiros, para avaliar as alternativas de tramitação das medidas provisórias do governo.
22 de maio
Arthur Lira e Rodrigo Pacheco se reúnem na residência oficial do presidente da Câmara para uma última (e frustrada) tentativa de acordo.
Renan Calheiros apresenta, no Plenário do Senado, a questão de ordem para restabelecer as comissões mistas de análise das MPs, com apoio da maioria governista.
23 de maio
Rodrigo Pacheco acata a questão de ordem, com apoio de todos os partidos no Senado, inclusive os da oposição, e declara, em entrevista, que a decisão é de uma “obviedade muito grande”.
Arthur Lira convoca entrevista coletiva e diz que decisão do Senado é “truculenta”.
24 de maio
Com diagnóstico de broncopneumonia, o presidente Lula reúne o Conselho Político no Palácio da Alvorada para discutir a crise institucional no Congresso, que pode pôr em risco a aprovação de medidas provisórias de interesse do governo.
Arthur Lira vai ao Palácio da Alvorada para conversar com o presidente e expôr sua insatisfação com a mudança no rito de tramitação das MPs.