Padre Kelmon processa igreja que o desmascarou

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Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo

O ex-candidato a presidente Kelmon Luis da Silva Souza (PTB), que concorreu nas eleições de 2022 como Padre Kelmon e se autoproclama sacerdote ortodoxo, está processando a Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia no Brasil por danos morais.

O político pede uma indenização de R$ 500 mil por danos morais e direito de resposta da instituição por causa de uma nota divulgada durante a corrida eleitoral em que a instituição afirma que ele não tinha qualquer vínculo com igrejas de comunhão ortodoxa.

No documento assinado pelo arcebispo Dom Tito Paulo George Hanna, a entidade também se disse preocupada com a apropriação de símbolos religiosos pelo político que “se autoapresenta como ‘padre Kelmon’ e ‘sacerdote ortodoxo’”, fazendo uso público de “insígnias próprias de nossa tradição siríaca ortodoxa”.

A nota cita como exemplo o eskimo, véu com cruzes bordadas usado sobre a cabeça que só os monges podem utilizar – que Kelmon exibiu em todos os debates presidenciais e que virou meme nas redes sociais. A igreja também afirmou, na ocasião, que o político não tinha qualquer vínculo com as igrejas irmãs da vertente siríaca.

Segundo o advogado de Kelmon, Diego Maxwell, o ex-candidato teve “sua imagem e sua dignidade abalada, tendo sido veiculado de maneira indevida a notícia de que era falso padre”.

Já a Sirian, conforme apuramos, ainda busca orientação advocatícia para lidar com a ação, já que a igreja nunca foi processada e nem sequer tem advogado constituído.

Conforme revelamos em agosto de 2022, quando Kelmon ainda era candidato a vice-presidente na chapa do PTB encabeçada por Roberto Jefferson, ele não integrava e nem fora ordenado pelas instituições ortodoxas tradicionais do Brasil.

O fato de ele reivindicar o título de padre causava inclusive desconforto na comunidade.

Diante das cobranças públicas, Kelmon se disse ligado à autoproclamada Igreja Católica Apostólica Ortodoxa del Peru, entidade que não é reconhecida pelas igrejas canônicas do antigo patriarcado ortodoxo.

Mesmo assim, acabou expulso da instituição peruana em dezembro, como mostrou O GLOBO. Até hoje não se sabe o por quê.

Depois disso, Kelmon afirmou que tinha passado a integrar a também autodenominada Igreja Ortodoxa Grega da América e Exterior, situada em uma casa na Zona Leste de São Paulo, como “bispo”. Apesar do nome, essa instituição também não possui nenhuma relação com a Igreja Ortodoxa Grega.

O uso inadequado de vestimentas religiosas e a própria polêmica em torno da legitimidade de Kelmon como padre deu a tônica de um dos momentos mais insólitos da campanha presidencial, durante o debate organizado pela TV Globo no primeiro turno.

Na ocasião, o agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva bateu boca com Kelmon, a quem chamou de “impostor”. A senadora e então presidenciável Soraya Thronicke (União-MS) o chamou de “padre de festa junina”.

Antes de ganhar projeção nacional durante a eleição presidencial, Kelmon, natural da Bahia, vivia na Ilha da Maré, uma localidade pertencente a Salvador.

Documentos da Defensoria Pública da Bahia indicam que ele se instalou na região para construir irregularmente uma igreja numa área quilombola. Para isso, teria ameaçado a integridade física de moradores.

Passada a eleição, na qual atuou como linha auxiliar de Jair Bolsonaro com as bênçãos de Roberto Jefferson, Kelmon agora vive em São Paulo. Ao menos é o que indicam os autos do processo contra a igreja Sirian Ortodoxa. Os documentos apontam uma casa vizinha à Represa de Guarapiranga, na capital paulista, como seu endereço residencial.

Diferentemente da Igreja Católica, unificada e concentrada na autoridade do Papa Francisco, a chamada comunhão ortodoxa se divide entre diferentes patriarcados e até mesmo instituições autocéfalas com raízes na Europa e na Ásia e missões em todos os continentes.

Um exemplo é a própria igreja processada por Kelmon, que receberá na próxima semana, em Brasília, o patriarca Efrém II, líder supremo do patriarcado Siríaco Ortodoxo de Antioquia e Todo o Oriente. Em sua primeira passagem pelo Brasil, em 2016, Efrém II chegou a ser recebido pelo então presidente Michel Temer.

Mas todas as igrejas canônicas com representação no Brasil são peremptórias: Kelmon jamais teve conexões formais com o segmento. A Confederação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) também rejeitou qualquer vínculo do político com o catolicismo.

A insistência do petebista no apelo religioso tem motivações políticas, disfarçadas pelo emaranhado de denominações religiosas difusas que confundem com facilidade o público em geral.

Foi graças a um vídeo publicado nas redes, que viralizou entre perfis de extrema-direita, que Roberto Jefferson entrou em contato com Kelmon e o convidou a se filiar ao PTB.

Na gravação, o autoproclamado padre denunciava uma suposta ação de intolerância religiosa na Ilha da Maré, fato que nunca foi comprovado. Mas foi suficiente para criar um movimento de solidariedade na bolha direitista, partindo inclusive de parlamentares como Carla Zambelli (PL-SP). A construção do personagem ortodoxo também não foi acidental.

Ao longo da investigação da equipe da coluna sobre a atividade religiosa de Kelmon, no ano passado, sacerdotes ortodoxos de igrejas canônicas ouvidos anonimamente apontaram a apropriação de indumentárias e até de denominações, como a ortodoxia, como um fenômeno cada vez mais recorrente no Brasil e em países vizinhos.

Essas entidades autoproclamadas, que podem se identificar da maneira que desejarem e não ferem a lei, têm sido formadas por religiosos que não conseguiram ascender dentro da comunhão ortodoxa ou integrantes expulsos destas igrejas e até do catolicismo por diferentes motivos.

Dessa forma, pessoas como Kelmon têm se aproveitado da legislação que assegura a liberdade religiosa para formalizarem “qualquer CNPJ” e se passarem como lideranças ortodoxas legítimas, enganando fiéis e estabelecendo um argumento de autoridade.

O advogado de Kelmon afirmou que o cliente moveu a ação em função de sua imagem e dignidade terem sido “abaladas” pela divulgação de que o então candidato a presidente não seria um padre – baseadas, na concepção do petebista, em “ilações e interpretações equivocadas” sobre sua atividade religiosa.

Nós também perguntamos se os honorários estão sendo custeados por Kelmon ou pelo PTB, mas seu advogado, Diego Maxwell, não respondeu alegando questões éticas.

O Globo