Parlamentares bolsonaristas querem manietar STF

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Durante a sua campanha à reeleição, Jair Bolsonaro fez dos ataques ao Supremo Tribunal Federal um importante instrumento de mobilização eleitoral. Ciente do desgaste da imagem do Poder Judiciário, ele prometeu que, se conquistasse um novo mandato, enquadraria ministros do STF, obrigando-os a jogar “dentro das quatro linhas da Constituição”. Para atingir esse objetivo, cogitou a ampliação do número de integrantes da Corte, medida adotada por ditadores e aspirantes a autocratas mundo afora, e até uma nova leva de pedidos de impeachment de magistrados, como o apresentado pelo próprio capitão contra Alexandre de Moraes, que acabou arquivado pelo Senado. O plano de Bolsonaro não foi levado adiante porque ele perdeu a corrida presidencial. Lula, o vencedor, não quer saber de confusão com o Judiciário, que foi responsável por sua prisão e, posteriormente, sua soltura. O petista promete pacificação e harmonia. Quando tudo parecia caminhar nessa direção, agora é o Congresso que anuncia a intenção de mexer nas engrenagens da Corte.

Parlamentares reclamam do ativismo e de decisões do Supremo que usurpariam competência de outros poderes. Há ainda ressentimento com investigações e julgamentos realizados no âmbito da Lava-Jato que tiveram deputados, senadores e líderes partidários como alvo. A disposição para acertar contas com a Justiça não se restringe a bolsonaristas e tem entre seus adeptos políticos do Centrão, muitos deles aliados de Lula. Na última disputa para a presidência do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que buscava a reeleição, tratou do tema em discurso na tribuna da Casa. Diante do crescimento da candidatura oposicionista de Rogério Marinho (PL-RN), embalada pela promessa de colocar cabresto no Judiciário, Pacheco defendeu — numa tentativa de neutralizar o rival — a votação de projetos para “se colocar limites aos poderes”. “Diferentemente do que sustentam, de revanchismo, de retaliação, de possível enquadramento ao Poder Judiciário, que dá a palavra final aos conflitos sociais e jurídicos, nós devemos cumprir o nosso papel verdadeiro: o de solucionar o problema através da nossa capacidade e do nosso dever de legislar”, disse ele.

Com a reeleição garantida, o presidente do Congresso agora está sendo pressionado a honrar o compromisso. Na lista de propostas de mudanças cogitadas pelos parlamentares estão a instituição de mandatos fixos para futuros ministros do Supremo, a definição de prazos para a retomada de julgamentos interrompidos por pedidos de vista no STF e a criação de regras mais claras para a tomada de decisões individuais dos magistrados do tribunal. Até o momento, a proposta mais convergente, embora longe de consenso, é a instituição de um mandato para os futuros juízes do Supremo, sem a possibilidade de recondução. Inspirada em países como Alemanha (doze anos de mandato), França (nove anos) e Portugal (dez anos), a ideia já foi discutida reservadamente entre Pacheco e ministros do STF. “Não é possível que um ministro assuma aos 40 e poucos anos e saia aos 75 anos (idade da aposentadoria compulsória). Com a proposta dos mandatos, os ministros entram sabendo a data em que vão sair. Isso talvez os deixem mais humanos. Hoje eles se acham semideuses”, diz o senador Plínio Valério (PSDB-AM), autor de uma emenda constitucional que fixa em oito anos o período de permanência de juízes no STF.

Os integrantes do Supremo consideram, com razão, ser arriscado o andamento desse tipo de projeto agora, já que outras medidas podem ser enxertadas durante a tramitação. Partido de Bolsonaro, o PL tem a maior bancada na Câmara e a segunda maior no Senado. É, portanto, uma força considerável. Nesse tema em particular, os bolsonaristas contam com a simpatia, nem sempre velada, da turma do Centrão, que passou apuros durante as investigações do mensalão e do petrolão. Mesmo em setores da esquerda, há severas restrições ao ativismo e a supostos exageros de determinadas decisões, que só não são externadas em público devido ao entendimento de que a Justiça ajudou a conter as aspirações golpistas dos radicais e, indiretamente, acabou dando empuxo à eleição de Lula.

Os arranhões na imagem do Judiciário e de seu ministro mais visível no momento também servem de combustível para a ofensiva parlamentar. Pesquisa divulgada pela Quaest em fevereiro mostrou que para 43% dos entrevistados o ministro Alexandre de Moraes, responsável por inquéritos que atingem a família Bolsonaro e também presidente do Tribunal Superior Eleitoral, está exagerando em suas decisões. Só 37% pensam o contrário. Já 29% consideram a imagem do Supremo negativa, enquanto 23% avaliam como positiva.

Congressistas consultados por VEJA afirmaram que a proposta de fixar um mandato para os futuros ministros do STF é apenas o ponto de partida das mudanças que querem ver implementadas no Supremo, as quais exigirão a aprovação de uma proposta de emenda constitucional. “A PEC vai começar com a ideia dos mandatos, mas não vai terminar assim. Vai vir um monte de coisa”, admite um influente líder do Centrão. É cogitada, por exemplo, uma mudança para que o próprio Congresso possa nomear integrantes da Suprema Corte, num revezamento entre o presidente da República, a Câmara e o Senado. Em maio passado, o primeiro rascunho de uma emenda constitucional nesse sentido foi apresentado a ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujos integrantes — quase todos — sonham com uma nomeação ao STF. Isso, por si só, já provocaria uma enorme turbulência, pois limitaria indiretamente o poder do presidente da República.

Há quem defenda ideias mais ousadas e estapafúrdias. Em proposta que arregimentou o apoio de parlamentares do PT ao PL, o senador Carlos Viana (Podemos-MG), por exemplo, apresentou a “PEC do ativismo judicial”, que prevê que ministros do Supremo serão enquadrados em crime de responsabilidade, que leva à cassação do mandato, caso deixem escapar algum tipo de posicionamento político. A deputada Chris Tonietto (PL-­RJ) já tentou mudar a Constituição para incluir entre as competências do Congresso a decisão de sustar atos do Poder Judiciário que “invadam” ações do Parlamento. O deputado José Medeiros (PL-MT) foi ainda mais longe e propôs a criação de uma lei para prender por abuso de autoridade, com pena de até quatro anos, o juiz que determinar, de forma injustificada, a remoção de perfis ou páginas de deputados ou senadores na internet.

O clima de acerto de contas abarca até questões aparentemente mais comezinhas. Alguns congressistas querem dar fim às transmissões ao vivo dos julgamentos do STF, que ganharam audiência principalmente a partir do processo do mensalão. Desconsiderando a necessária e benfazeja transparência, eles alegam que as transmissões açulam a vaidade dos magistrados e também os deixam mais suscetíveis a pressões da opinião pública. Ainda não está claro como os parlamentares pretendem garantir a tramitação dessas iniciativas. Em uma frente inicial de ação, senadores simpáticos a Bolsonaro pretendem montar uma espécie de tropa de choque na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), colegiado que analisa a legalidade de propostas legislativas, para fazer valer a tese de que o Supremo precisa de nova regulação. Plínio Valério, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), o ex-juiz Sergio Moro (União-PR) e o senador Eduardo Girão (Novo-CE), um dos mais contundentes críticos do tribunal no Congresso, estão sendo estimulados a compor a CCJ.

No ano passado, integrantes do Supremo detectaram as digitais do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), à época aliado fiel de Bolsonaro, na mais problemática e preocupante das ideias, a de ampliar as atuais onze cadeiras do STF. O deputado nega ser pai da ideia. Há tempos ministros da Corte observam movimentos pendulares no Congresso nessa direção. Embora o aumento de assentos não seja falado abertamente pelos patrocinadores da tese, os ministros estão convictos de que o tema não foi sepultado por completo e só aguarda o momento político ideal — uma primeira crise com o Executivo, por exemplo — para ser colocado sobre a mesa. “O plano de alterar esse modelo elevando o número de ministros do tribunal, ou fixando mandatos, me parece motivado pelos mesmos sentimentos ditatoriais que levaram o governo Castello Branco a fazer algo semelhante em 1965 ou o governo Erdogan a mexer na Corte Suprema da Turquia em 2010. Não se trata aí de aperfeiçoar coisa nenhuma”, disse a VEJA o ex-­ministro do STF Francisco Rezek. “Isso pode virar um rastilho de pólvora na medida em que se sabe que ampliar as vagas na Corte é uma coisa que todos desejam porque advogados, Ministério Público e os próprios juízes veem oportunidade de ascender ao tribunal. Para o governante de plantão também é interessante, mas para o Supremo é péssimo”, completa um membro da atual composição do STF.

Nas conversas travadas, o Supremo recebeu de Rodrigo Pacheco a garantia de que nenhuma proposição mais tresloucada será levada adiante. Na segunda semana de janeiro, dias após os protestos que culminaram nos terríveis atos de vandalismo em Brasília, o senador se reuniu com seis ministros do tribunal. Em campanha na época para comandar o Congresso por mais dois anos, comunicou que pretendia levar adiante a proposta de mudar algumas regras sobre o funcionamento da Corte, uma iniciativa que, segundo ele, serviria para aplacar os ânimos de alguns colegas do Parlamento. A mais radical das medidas, garantiu, seria estabelecer um mandato para os juízes. Na hora, a reação foi de perplexidade, e a insatisfação, generalizada. “Tudo indica que Pacheco está construindo um armistício com o bolsonarismo, o que seria como a paz que um dia se tentou com Adolf Hitler”, reagiu depois um dos ministros. O presidente do Senado, no entanto, não vê motivos para alvoroço. “São discussões legislativas honestas que precisam ser feitas”, resume ele.

Verdade. Mas os últimos anos da política brasileira mostram que o timing para uma discussão dessa magnitude pode não ser o ideal. Em 2019, no primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro iniciou sua jornada de enfrentamento ao STF. Além da retórica, o então presidente participou de manifestações que pediam da destituição de ministros ao fechamento do tribunal. Esse comportamento irresponsável alimentou o clima de animosidade que esteve na raiz dos graves eventos do dia 8 de janeiro passado. É muita ingenuidade achar que esse sentimento simplesmente evaporou em menos de dois meses. Por isso, discutir mudanças no Supremo, apesar de ser um movimento legítimo, neste momento é, no mínimo, imprudente. “O que mais impressiona é que os parlamentares não fazem o debate de fundo sobre o que é um bom candidato a ministro. Que tipo de pessoas queremos selecionar para o Supremo, com quais atributos, com que tipo de histórico? Ficar discutindo o regime de trabalho sem esse debate de fundo tende a não representar nenhum avanço”, afirma Rubens Glezer, professor da FGV.

O tal debate de fundo, aliás, poderá ser feito duas vezes neste ano, em razão da aposentadoria dos ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Caberá a Lula indicar os sucessores e ao Senado cumprir o seu papel de sabatinar e aprovar aqueles que reunirem as condições adequadas para ocupar o cargo. Se isso for feito com diligência, será um grande avanço institucional, sem o risco de criar sobressaltos ou instabilidades num momento em que há uma fila de problemas mais urgentes que precisam de fato ser enfrentados.

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