Professora da USP critica nomeação de outro branco para o STF
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O predomínio de homens brancos na lista de indicados ao STF (Supremo Tribunal Federal) e para outros tribunais superiores reflete a lógica jurídica masculina vigente no Brasil, em que as mulheres são desconsideradas, como se não houvesse notório saber entre elas, analisa a professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto.
Ela classifica como insulto que a esquerda reproduza tal lógica.
Na última semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse que “todo mundo compreenderia” caso ele indicasse seu advogado, Cristiano Zanin, para a vaga que será aberta com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, em maio, quando completará 75 anos de idade.
Para Severi, aqueles que se consideram democratas devem lutar pela pluralidade no STF e pautar o debate para que a corte tenha pela primeira vez uma ministra negra.
Especialista em direito e gênero, Severi está em um período de fellowship na Universidade de Münster, na Alemanha, e coordena um projeto de reescrita de decisões judiciais na perspectiva feminista.
Autora de pesquisa sobre mulheres e Judiciário, ela afirma que embora haja mais mulheres na primeira instância, a ascensão profissional continua a ser barrada por regras masculinas que desconsideram a realidade das mulheres.
O STF tem apenas duas ministras mulheres, mas a lista de cotados para a vaga de Ricardo Lewandowski é, em sua maior parte, formada por homens brancos. O que impede que mulheres cheguem na disputa? Temos 53% de mulheres na população e esse é mais ou menos o percentual de mulheres nos cursos de direito. Tivemos um aumento de mulheres em concursos públicos, se olharmos a base da magistratura, principalmente, estadual, em primeiro grau. Aí você fala: ‘Bom, então, daqui a pouco nós chegamos nas posições’. É aí que chegamos no gargalo. Estudos tanto no Brasil como em outros países mostram que não. É nesse momento que as barreiras começam a ser mais fortes.
Nos tribunais estaduais, mulheres juízas ganham, mais ou menos, 8% a menos que os homens. Isso tem a ver com algumas disputas e regras para a ascensão na carreira que são bastante masculinizadas e que impedem que mulheres, sobretudo as com responsabilidades do cuidado doméstico, ou que não têm condição de fazer mobilidades dentro do estado, ascendam na carreira.
É muito difícil lidar com a cultura jurídica brasileira em que a imparcialidade ou ideal de profissionalismo está muito associado a um raciocínio típico que é masculino.
Essa visão do homem no direito como o imparcial também está presente na esquerda? Nessa cultura que associa profissionalismo, imparcialidade, notório saber, há uma performance do masculino. Todos os nomes [cotados] são jovens brancos até entre os grupos progressistas. Isso é horrível porque mostra que, mesmo depois do que passamos nesses quatro anos, o campo democrático brasileiro parece que não está levando a sério ainda o que é democratização de fato.
Não está considerando que foram as mulheres que saíram nas ruas lá atrás, na eleição do Bolsonaro, porque elas já percebiam o risco para os direitos delas e para os direitos humanos. Não é possível que em 53% do eleitorado não tenha mulheres com notório saber. Geralmente se escolhe os ministros dentro de um círculo pequeno de poder e as pessoas desse círculo hoje são homens brancos, mesmo dentro da esquerda.
Ter uma lista de homens brancos vindo do campo democrático é quase um insulto, porque sabemos que não é uma questão de falta de conhecimento jurídico, de capacidade e de nomes. Precisamos pluralizar os perfis que estão no poder. Imaginar que não tem mulheres é desconsiderar as profissionais que estão há anos demonstrando conhecimento jurídico.
O STF nunca teve uma ministra negra, e apenas três ministros negros atuaram no tribunal desde 1891, o último foi Joaquim Barbosa. No STJ, só há o ministro Benedito. O que isso diz sobre a Justiça no Brasil? Esse é um número que se reproduz em todas as profissões ligadas ao direito. Ele revela a nossa dificuldade de construir uma imaginação jurídica para lidar com as questões que são mais centrais no país hoje, que é associar a luta pela democracia, combate à fome e qualquer uma dessas agendas à luta antidiscriminatória e contra o racismo institucional.
Isso passa por aumentar a paridade de pessoas negras no círculo do poder. Nossa democracia está em risco e nós temos que avançar com mais competência.
Aquela imagem que emocionou todo mundo na posse do Lula de uma mulher negra, catadora, colocando a faixa presidencial, foi muito forte porque ela representa a aposta que a maioria dos eleitores fizeram para o governo. Imaginar que agora nós não vamos ter a indicação de uma mulher negra para o STF, a imagem fica só retórica e não é o que a gente precisa agora.
O STF é um dos últimos espaços, do ponto de vista da estrutura política do país, em que seria fundamental termos uma negra com repertório ligado aos direitos humanos e antidiscriminação.
Quais nomes de mulheres e negros já poderiam ter sido indicados? As mulheres negras juristas estão organizadas já há alguns anos no país para tentar fazer avançar a presença delas nas cortes. Logo no começo do ano, quando recebemos a primeira lista de indicados com uns dez homens brancos, acionamos esse grupo para fazer uma lista de mulheres negras, mas elas não quiseram, porque a experiência delas nos momentos anteriores foi muito ruim. Elas foram massacradas.
O que precisamos hoje é uma indicação clara do Lula, das entidades e do campo democrático de que essa pessoa deve ser uma mulher negra. É preciso sinalizar isso se você é um democrata. O momento agora é fazer a defesa da diversificação da composição do STF. Se esse debate aumenta há uma lista enorme de nomes e muitas pessoas que estão no círculo do poder conhecem esses nomes.
Considerar que o Lula não está colocando na mensagem central indicar uma mulher, sob a justificativa de que já indicou um ministro negro e uma mulher lá atrás, é até doloroso. Estamos falando de uma posição no Brasil em relação ao resto do mundo que é vexatória. Nós temos de modo geral menos de 20% de mulheres e quase a inexistência de mulheres negras nas cortes superiores. Isso é um problema para qualquer democracia.
Há uma crítica sobre a não aplicação de cotas de forma efetiva pelo Judiciário. O que é preciso para avançar? Existe uma resistência ainda em relação à política de cotas. Não se vê os tribunais comprometidos com isso e com a revisão das suas regras internas para que possamos ter progressões de fato igualitárias.
É preciso um compromisso mais forte. Também é necessário um diagnóstico sobre o formato dos concursos que tiveram as cotas raciais para entender por quê não funcionaram para mudarmos esse padrão.
Seus estudos mostram que a desigualdade salarial também impacta as mulheres na carreira. Qual é o reflexo disso? A forma como a profissão é organizada faz com que as mulheres ocupem funções ordinárias e não alcancem cargos que estão dentro da carreira, porque muitas vezes isso está associado a uma carga além do trabalho ou um tipo de ação que envolve mobilidade territorial. Essa profissional faz a conta em relação aos compromissos familiares e fala que aquilo não é para ela.
Se a profissão fosse igualitária, não faz sentido exigir atividades para além da carga horária. O que essa diferença revela é o estacionamento das juízas em uma posição inicial da carreira. Os homens que não têm responsabilidade doméstica têm mais facilidade para estar nesses lugares mais próximos do círculo de poder e saltar para outras posições.
A falta de diversidade também está presente no perfil das mulheres que chegam ao Judiciário, a maioria branca, das classes média e alta. Como isso impacta as decisões judiciais? Há um estudo do CNJ que fez um cálculo médio do investimento para a pessoa passar no concurso da magistratura, e é altíssimo. No final das contas, tirando aquelas vagas que são preenchidas por cotas, geralmente, quem passa são mulheres e homens de elite.
Quando essas pessoas estão diante, por exemplo, de um processo judicial envolvendo uma trabalhadora doméstica, qual é a experiência mais frequente que elas vão ter? É a de serem empregadoras. A falta de outros repertórios e experiência de vida faz com que os juízes reproduzam a sua própria experiência de elite.
O que os meus estudos também têm mostrado é que há um constrangimento interno quando um juiz toma uma decisão fora daquilo que é mais associado à ideia de uma perspectiva imparcial.
Por exemplo, uma juíza garantindo o direito à trabalhadora doméstica, sem reproduzir estereótipos prejudiciais, parece estar ferindo a imparcialidade, não ao contrário. Para uma juíza bancar isso é difícil, porque ela tem o constrangimento dos seus pares.
Durante a pandemia, houve um pleito das magistradas pela continuidade do trabalho remoto para conciliar jornadas. Essa demanda pode impactar no direito de outras mulheres? As audiências virtuais são piores para elas? Tem um estudo do qual participei que ouviu mais de 50 lideranças comunitárias que são chamadas de promotoras legais populares sobre a situação das mulheres em situação de violência durante a pandemia. Elas contam que para muitas [o atendimento remoto] foi a mesma coisa que fechar a porta do Judiciário, porque elas não têm computador em casa e um celular autônomo só delas.
Para esse grupo de mulheres, que não é pequeno do ponto de vista percentual populacional, essa resposta foi insuficiente. Voltar para a forma presencial ajuda um pouco, mas também é preciso repensar a própria rede de proteção de enfrentamento à violência.