Sem estabilidade, auditores da Receita não barrariam Bolsonaro

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Foto: DIVULGAÇÃO/RECEITA FEDERAL

A estabilidade dos servidores públicos voltou a ser alvo de discussão nos últimos dias, após o caso das joias avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões que foram enviadas da Arábia Saudita ao Brasil e teriam como destinatária a então primeira-dama Michelle Bolsonaro.

De acordo com reportagem da TV Globo, aliados do então presidente Jair Bolsonaro chegaram a tentar liberar as peças, mas foram impedidos por auditores da Receita Federal, que apontaram a falta de uma série de requisitos formais no pedido de liberação.

Essas joias (um colar, um anel, um relógio e um par de brincos de diamantes) foram apreendidas em outubro passado, após serem confiscadas ao chegar ao país com um integrante da comitiva do Ministério de Minas e Energia que desembarcou no Aeroporto de Guarulhos.

Elas foram apreendidas, conforme revelado primeiramente pelo jornal O Estado de S.Paulo, porque não foram declaradas nem como itens pessoais, sujeitos a pagamento de impostos, nem como presente oficial para o Estado brasileiro.

Em rede social, Michelle Bolsonaro afirmou que não tinha conhecimento das joias.

À rede CNN Brasil, o ex-presidente disse que incorporou ao acervo privado um outro estojo presenteado pelos sauditas com caneta, anel, relógio, um par de abotoaduras e um terço, mas negou irregularidades. Ele negou conhecimento dos objetos que teriam sido destinados a Michelle.

Em meio à repercussão do caso, um dos fatos que chamou a atenção foi a importância da estabilidade dos servidores da Receita Federal para impedir a liberação da entrada do material valioso no país.

Essa estabilidade costuma ser alvo de discussões frequentes. Enquanto há quem a defenda como medida fundamental para a administração pública, outros afirmam que é uma forma de desmotivar esses trabalhadores ou até mesmo tornar o serviço público ineficiente.

A estabilidade no serviço público é assegurada na Constituição Federal desde 1934 e sofreu alterações pontuais ao longo das décadas. Atualmente, ela tem início após o servidor concursado passar por um período de três anos exercendo a sua função de modo adequado.

Esse recurso tem o objetivo principal de defender a administração pública. Isso serve para tentar evitar que a máquina pública seja usada para fins políticos, apontam os especialistas.

“É um mecanismo de proteção que permite aos servidores dizerem não e barrarem atitudes de governantes que possam ser contrários aos procedimentos e à legalidade”, diz Gabriela Lotta, professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O caso das joias barradas no aeroporto passou a ser usado como exemplo sobre a relevância dessa estabilidade.

“É um exemplo muito claro de que a estabilidade protege a sociedade e não o servidor público em si. É uma proteção maior para o Estado brasileiro”, diz Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco).

“Justamente para que uma chefia A ou B ou um chefe do governo não fique à vontade para pressionar o servidor. É o caso das joias em que os auditores não se sentiram pressionados porque estavam fazendo o que a lei manda”, acrescenta Silva.

Para o presidente da Unafisco, caso não houvesse a estabilidade no serviço público, o fim da história das joias poderia ser outro. “Sem essa estabilidade o servidor poderia se sentir ameaçado de demissão por causa dessas insinuações (feitas para liberar as joias), que não foram poucas. É exatamente para evitar isso que existe a estabilidade”, diz.

Pelo mundo, inúmeros países também adotam a estabilidade no funcionalismo público.

“As grandes democracias asseguram a lógica de estabilidade para seus servidores, incluindo os EUA, que é um país bastante liberal. Durante as últimas décadas houve um movimento de diminuição do número de servidores públicos em vários destes países também, processo vinculado às chamadas reformas gerenciais ou neoliberais”, explica Gabriela Lotta.

O que ocorreu nesses países que fizeram reforma relacionada ao funcionalismo público, diz Lotta, foi uma diminuição principalmente de estabilidade a servidores que prestavam serviços diretos aos cidadãos — como profissionais de saúde. Já os servidores de áreas sensíveis e que podem sofrer pressões políticas, como área fiscal e de regulação, continuaram com a estabilidade.

No Brasil, os servidores somente perdem seus cargos em razão de infração considerada grave, após processo judicial ou administrativo, no qual há a chance de ampla defesa.

Nas últimas décadas, houve diversas tentativas de reduzir ao máximo a estabilidade concedida no serviço público brasileiro.

Há quem defenda o fim dessa estabilidade, sob o argumento de que essa medida é prejudicial e afeta funções importantes porque faz com que os trabalhadores se sintam desmotivados a prestar um bom serviço.

Essa ideia de que servidores com estabilidade têm um desempenho inferior, pois muitos podem se sentir acomodados, é criticada por Gabriela Lotta.

“Essa lógica não se comprova assim. O que os estudos mostram é que vários fatores impactam no desempenho (inclusive o acesso a recursos, a possibilidade de crescimento na carreira, o ambiente de trabalho etc). E sem considerar estes vários fatores, não dá para fazer uma associação direta entre desempenho e estabilidade”, diz.

Lotta ressalta que a estabilidade no funcionalismo público brasileiro “não é irrestrita” e que há situações em que é possível haver demissões em alguns casos.

“Por exemplo, quando há abandono de cargo, falta injustificada, crime de corrupção ativa e passiva, prevaricação e outros. Centenas de servidores públicos são exonerados por ano. Mas esse processo não é uma decisão hierárquica unilateral, ela pressupõe um processo e várias instâncias recursivas justamente para garantir ampla defesa para o servidor e protegê-lo de perseguições, por exemplo”, afirma.

O governo Bolsonaro, crítico ferrenho da estabilidade no funcionalismo público, chegou a apresentar uma proposta por meio da reforma administrativa para alterar a estabilidade e deixá-la na forma atual somente a algumas carreiras, como aquelas que são consideradas estratégicas para a administração pública.

Mas a proposta não seguiu como o governo Bolsonaro esperava no Congresso. Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que as chances de haver qualquer medida de retirada da estabilidade de servidores públicos, como já discutido em décadas passadas, é quase nula.

“Não vejo com bons olhos o fim da estabilidade, pois a máquina pública, mais especificamente a brasileira, não está preparada para isso. A perda da estabilidade geraria uma série de demissões com caráter político e a finalidade pública estaria comprometida. A estabilidade tem previsão constitucional e o seu desmonte é uma ruptura caótica”, afirma o advogado Felipe Carvalho, especialista em Direito Público, Eleitoral e Administrativo.

Carvalho acredita que a estabilidade do serviço traz “um comodismo ao servidor (não todos)”, que, segundo ele, “poderia ser enfrentado se os entes públicos tivessem sistemas de avaliações realmente bons, delimitados e amplamente divulgados”.

Para o presidente da Unafisco, Mauro Silva, tentar colocar um fim na estabilidade é uma ameaça ao país por parte “daqueles políticos que querem se aproveitar do Estado brasileiro”.

“Quem impede esse político que quer trazer o patrimônio público para o privado é o servidor público com estabilidade. E o mau político que quer se aproveitar tem todo o interesse de retirar a estabilidade do servidor para eliminar aquele que está na frente para impedir”, declara Silva.

BBC