Servidores que barraram joias mostram importância de serem independentes

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Foto: Danilo Verpa/Folhapress

A recusa de um servidor da Receita Federal em liberar um conjunto de joias milionárias a um militar enviado oficialmente pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) ao aeroporto de Guarulhos (SP) evidenciou a importância dos mecanismos de proteção ao servidor público, como a estabilidade e a burocracia, para que ele cumpra seu trabalho com autonomia e sem pressão política.

A principal função desses benefícios ao trabalhador público é a manutenção dos serviços prestados à sociedade e a garantia de que serão realizados de acordo com as leis e as regras vigentes, segundo a socióloga Tânia Maria de Souza, que atualmente é diretora executiva da Ascema Nacional (Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente).

Tânia afirma que a instabilidade das instituições seria altíssima se a cada mudança de governo ou desagrado de um político fosse possível mudar ou demitir todos os funcionários públicos.

“O servidor tem o dever de cumprir suas funções de forma técnica e legal. A estabilidade serve para proteger o serviço público por meio do servidor público”, afirma Tânia, que também é analista ambiental do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Esta é a 7ª reportagem da série Profissional Público do Futuro, parceria entre a Folha e a República.org, que debate oito temas em torno da modernização do serviço público no Brasil.

Para evitar instabilidade na democracia e na administração pública, a AGU (Advocacia-Geral da União) instituiu em janeiro um grupo de trabalho, aberto a contribuições das organizações da sociedade civil e dos poderes públicos, para auxiliar na regulamentação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, que vai discutir a integridade da ação pública e legitimação dos Poderes.

O grupo terá como objetivo, entre outras funções, combater a desinformação e atuar em conjunto com o futuro Sistema Nacional de Proteção à Democracia. Outro foco visa ampliar a participação da AGU em ações e debates relacionados à legitimidade e ao fortalecimento da soberania brasileira. Um dos temas a ser discutido será “Democracia e Representação de Agentes Públicos”.

Ao longo da gestão Bolsonaro (2019-2022), houve denúncias de perseguição a funcionários públicos contrários ao ex-mandatário.

Um diagnóstico sobre ataques à burocracia por aquele governo, coordenado pela vice-presidente da República.org e professora de administração pública da FGV (Fundação Getulio Vargas) Gabriela Lotta, revela retaliações e assédios cometidos no período.

O mapeamento foi realizado com cerca 220 servidores públicos concursados de 15 organizações diferentes do governo federal, entre 2020 e 2022, em condição de anonimato para suas proteções.

“Nessas entrevistas a gente mapeou diferentes tipos de exercício de controle ou de uma forma de opressão da burocracia. O assédio e a opressão procedimental são exemplos. Por outro lado, a gente queria saber como é que a burocracia estava resistindo”, afirma Gabriela.

Entre os depoimentos, há casos como o de um funcionário do Itamaraty, crítico ao governo Bolsonaro, que tinha um posto disputado em um país seguro da Europa. Uma noite ele foi dormir e, quando acordou, descobriu pelo Diário Oficial da União que ele e sua família seriam transferidos para uma zona de guerra. Tudo sem prévio aviso ou acordo, segundo Gabriela.

“Se você entrar na Justiça alegando retaliação, como vai provar? O governo tem a prerrogativa de decidir onde as pessoas trabalham, mas o modus operandi é negociar com antecedência. O governo fazia dentro da legalidade. Mas era uma reinterpretação das regras contra os servidores e a favor do governo.”

“É uma zona cinzenta, nem o sindicato consegue proteger. São pequenas práticas de assédio que vão minando o servidor.”

Tânia, da Ascema, tem relato similar, quando diz ter havido intimidações, ações e demissões indevidas. Segundo ela, foi uma ameaça de rompimento das instituições e da democracia nesse período quando, para ela, o Estado de Direito e a sociedade estiveram em risco.

“Para gerar a instabilidade desejada, o método foi o assédio moral, mas também o institucional, onde a forma de agir leva ao esfacelamento dos procedimentos, quebra de lógica de funcionamento corporativo, adoecendo as pessoas, inclusive.”

A insegurança para tomar decisões forçou um êxodo de servidores para fora de Brasília, licenças e até pedidos de demissão, de acordo com o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) José Celso Cardoso, coautor de livros que denunciam assédios em governos passados, como “Trajetórias da Burocracia na Nova República: Heterogeneidades e Perspectivas (1985-2020)”, lançado em março.

“Isso culminou em situações catastróficas como a tragédia do povo indígena Yanomami. Há casos em diversos órgãos federais, como a cultura e os órgãos de pesquisa de produção de informação, em que servidores foram constrangidos a não se manifestar publicamente sobre fatos ou dados que fossem contrários à visão de governo.”

Em 2020, o governo Bolsonaro exonerou cinco funcionários da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, fundação responsável por manter acervos de intelectuais e escritores brasileiros. Um deles foi sociólogo José Almino, que presidiu o espaço entre 2003 e 2011.

“Critiquei a nova gestão da Casa nas redes sociais e abri a fila de funcionários processados por assédio moral pela então presidente. Ganhei a causa, mas foi uma fase de tensão”, afirma Almino, que se manteve na administração pública como pesquisador e professor de mestrado, já que era concursado.

Aliados do governo Bolsonaro consultados pela reportagem negaram as acusações e ressaltam a necessidade de modernização do arcabouço legal para tornar o dia a dia do funcionário público e do órgão em que ele trabalha mais equânime, produtivo e confortável para os dois lados.

Gabriela Lotta cita a burocracia como outro mecanismo de proteção ao servidor. Segundo ela, a grande forma de resguardo é o funcionário fazer os procedimentos de forma prevista em lei, normas e regulamentos.

“É por haver esse processo legalizado que o servidor se protege. Toda a conduta deve ser registrada em sistema porque, se alguém tentar fazer mudanças arbitrárias, deixará rastros. Ele não deve aceitar ordens por WhatsApp, mas sim por meios oficiais. Ter procedimentos é uma forma de autoproteção imprescindível para os funcionários tomarem decisões, não é só a estabilidade.”

Outra forma de perseguição, de acordo com Cardoso, foi a demissão de desafetos por meio dos PADs (processo administrativo disciplinar onde a administração pública pode punir seus servidores que cometam infrações) motivados por razões políticos e ideológicas.

“Isso virou uma ‘política’ na era Bolsonaro. O assédio passou a ser corriqueiro, não declarado. Perpassou a administração pública federal como um todo, com exceção dos militares, que sempre foram privilegiados por esse governo.”

Gabriela enxerga melhores expectativas para o funcionalismo. Ela afirma que o atual governo Lula está investindo em reverter procedimentos distorcidos, mas precisa ir além. A especialista diz que é preciso aproveitar o momento para tomar medidas que no futuro evitem ameaças como as relatadas.

“Lula tem falado da necessidade de valorizar os servidores, de protegê-los e de garantir que eles possam atuar livremente e, inclusive, criticar o próprio governo no âmbito das atuações que são previstas em lei. Isso é parte do Estado democrático. Afinal, os servidores não são funcionários do governo, e sim do Estado.”

Folha