TCU descobre crime inédito de Bolsonaro

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Foto: Washington Costa/MF

Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) aponta que, entre 2018 e 2020, foram detectados oito acessos indevidos feitos por servidores da Receita Federal a dados sigilosos de contribuintes, dos quais seis foram classificados como envolvendo “pessoas politicamente expostas (PEPs)”. O documento, ao qual o Valor teve acesso, também aponta fragilidades nos sistemas do Fisco e vem à tona em meio às denúncias de que o ex-chefe de inteligência do órgão durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro teria acessado e copiado dados fiscais cobertos por sigilo de adversários do então chefe do Poder Executivo.

Este último episódio, que envolve o auditor fiscal Ricardo Pereira Feitosa, foi revelado pelo jornal “Folha de S.Paulo”. Segundo o Valor apurou, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deve demiti-lo. A defesa dele nega que ele tenha cometido qualquer irregularidade.

Independentemente do desfecho desse caso, a auditoria do TCU concluída no fim do ano passado mostrou que o sistema da Receita Federal tem brechas que poderiam permitir acesso indevido a informações sigilosas de contribuintes por parte de servidores do órgão. O tribunal determinou providências para o aprimoramento dos sistemas eletrônicos do Fisco em até 120 dias a partir de 7 de dezembro, prazo que ainda não expirou.

No processo analisado, o TCU narra que, após identificar os acessos indevidos às informações dos contribuintes, foram instaurados processos administrativos, dos quais quatro foram concluídos com responsabilização dos servidores e aplicação de penalidades. O órgão não detalha o teor das punições, os contribuintes envolvidos nem os servidores públicos, apesar de ser possível detectar quais servidores acessam dados sigilosos por meio do próprio sistema da Receita.

Por outro lado, o TCU aponta que não é possível impedir os acessos devido à estrutura atual do órgão fiscal. “Não há mecanismos para evitar a ocorrência de eventos que representam violação do dever de sigilo fiscal, especialmente em relação a pessoas expostas politicamente, ocupantes de cargos de relevo na República”, assinalou na ocasião o ministro Bruno Dantas, que analisou o processo.

Os auditores do TCU assinalaram no relatório que o sigilo fiscal não se impõe somente à divulgação externa das informações disponíveis no banco de dados do órgão custodiante, “mas também se aplica ao acesso interno dessas informações por seus servidores”. Os técnicos apontam que pessoas expostas politicamente têm maior risco de que seus dados sejam acessados “de maneira imotivada devido aos cargos e às funções que ocupam e uma vez que a inspeção foi motivada justamente por um possível acesso aos dados sigilosos dessas pessoas”.

No processo na Corte de Contas, a Receita alegou que seria impraticável a implementação de travas automáticas para acesso pelos servidores aos seus sistemas, que também reúnem declarações de Imposto de Renda de Pessoas Físicas. De acordo com o órgão, isso afetaria outros processos de trabalho e comprometeria sua atuação.

“Eventuais limitações de sistema não devem servir como justificativa para não implementar controles necessários ao cumprimento de dever legal de resguardo do sigilo fiscal, de qualquer cidadão que seja”, escreveu o ministro-relator em seu voto. “É dizer, o sistema deve se amoldar ao cumprimento do dispositivo legal, e não o contrário.”

Em relação ao caso específico de Ricardo Pereira Feitosa, o Ministério Público junto ao TCU solicitou nessa quarta-feira, 1, a abertura de um processo para investigar eventuais irregularidades. Autor do pedido de investigação, o subprocurador-geral do TCU Lucas Rocha Furtado argumenta que as ações de Feitosa “podem configurar infrações de abuso de poder, além de improbidade administrativa”. Segundo ele, a “atuação ilegítima” do servidor “compromete a boa gestão dos recursos públicos”, que é o foco de atuação do tribunal.

“O acesso indevido a dados sigilosos desses personagens por parte do servidor da Receita Federal poderia, em tese, objetivar a obtenção de informações que pudessem constranger de alguma forma esses indivíduos, em contraposição a suas posições críticas à família Bolsonaro, de modo a, dessa forma, atender um eventual interesse meramente pessoal do ex-presidente, caracterizando desvio de finalidade no uso de dados, informações e recursos materiais do serviço público em prol de interesse particular”, sustenta o procurador.

A representação de Furtado foi distribuída pelo presidente do TCU, Bruno Dantas, para relatoria do ministro Walton Alencar Rodrigues. Ainda não há qualquer prazo para que o caso seja julgado.

De acordo com reportagem do jornal “Folha de S.Paulo”, um dos alvos teria sido o então procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro, Eduardo Gussem, um dos responsáveis pelas investigações no MP carioca sobre as “rachadinhas” de membros da família Bolsonaro. O empresário Paulo Marinho e o ex-ministro Gustavo Bebbiano, falecido em 2020, também teriam sido alvo da quebra de sigilo fiscal indevida pela Receita.

A defesa do auditor, por meio do advogado Marco Marrafon, disse que ele “não promoveu violação do sigilo legal, não tendo realizado vazamento de dados e informações de contribuintes”. “Esclarecemos que o vazamento seletivo de um processo que corre sob sigilo legal é crime e promove uma violação à segurança do adequado andamento processual em curso”, acrescentou em nota.

A Receita Federal confirmou as investigações. De acordo com o órgão, em reunião realizada em 3 de janeiro deste ano, “houve relato de fatos e eventos que podem, em tese, configurar ilícito a ser devidamente apurado”. A Receita informou que o relato foi registrado em ata subscrita pelo secretário especial Robinson Barreirinhas com três servidores da Receita Federal e da Corregedoria do Ministério da Fazenda.

“A ata foi enviada para a Corregedoria do Ministério da Fazenda, e é, por ora, sigilosa por conter fatos que podem vir a integrar procedimento correcional”, informou o órgão. A Receita nega que tenha havido qualquer pressão do atual comando da Receita Federal para renúncia do mandato do Corregedor do órgão. Procurada, a Receita Federal não retornou até o fechamento da reportagem para comentar o relatório do TCU obtido pelo Valor.

Valor Econômico