Emissária da ONU investigará genocídio étnico no Brasil
Foto: Greg Ehlers – 20.fev.18/SFU
Pela primeira vez, o Brasil receberá a partir do dia 2 de maio a visita de uma representante da ONU que tem, como mandato, investigar riscos de genocídio entre uma população. A queniana Alice Wairimu Nderitu, conselheira especial do secretário-geral para a Prevenção de Genocídio, ficará no país até 12 de maio e focará sua agenda na situação dos povos indígenas e da comunidade afrobrasileira.
A visita foi autorizada pelo governo brasileiro, o que foi interpretado como um sinal duplo: um gesto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para mostrar comprometimento com a pauta de direitos humanos; mas também como uma forma de expor o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que enfrenta denúncias no Tribunal Penal Internacional por genocídio dos povos indígenas — o processo que depende do procurador-geral da corte. Num documento obtido pelo UOL com exclusividade, a entidade comunica ao governo que “o objetivo da visita é que a assessora especial realize consultas com altos funcionários do governo e outros parceiros relevantes sobre seu mandato”. “Enquanto estiver no país, Nderitu também gostaria de aproveitar a oportunidade e fazer uma visita de cortesia ao chefe de Estado, Luiz Inácio Lula da Silva”, solicita a carta oficial da ONU.
Ao concluir a visita, a representante produzirá um informe que será submetido ao secretário-geral da ONU, António Guterres. Do lado brasileiro, o governo quer usar recomendações e críticas para fortalecer seu posicionamento, blindar algumas das políticas de direitos humanos e dar munição para eventuais processos contra Bolsonaro e seus aliados. Indígenas e população afrobrasileira Dois temas centrais estarão na agenda da representante da ONU: situação dos povos indígenas, com especial atenção para a região yanomami. A relatoria, porém, não se limitará ao Norte do Brasil. A esperança de entidades de direitos humanos é de que a missão também inclua a cidade de Dourados (MS) para examinar a crise que atravessa o povo guarani-kaiowá. visita às comunidades da periferia do Rio de Janeiro. Nesse caso, o foco é a situação da população afrobrasileira, principalmente na comunidade de Jacarezinho. A escolha não acontece por acaso. Num informe que será apresentado nesta quarta-feira pelo Instituto Vladimir Herzog, constata-se que os últimos anos registraram “os maiores índices de invasão de terras indígenas da história”.
De acordo com dados do Conselho Missionário Indigenista de 2020, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. “Foram 263 casos que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados – um acréscimo de 137% em relação a 2018”, afirmam. Outro destaque é o aumento dos ataques e mortes de indígenas, incluindo crianças, por parte de garimpeiros, posseiros e latifundiários. “Segundo o Conselho Missionário Indigenista, em 2020, foram 182 assassinatos de indígenas, 63% mais do que em 2019, quando 113 indígenas foram assassinados”, disse.
A realidade da população negra também chama a atenção internacional. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 mais de 6,4 mil brasileiros foram mortos por intervenção policial. Naquele ano, 78,9% eram negros. Em sua posse como ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida deixou claro que combater a violência do estado seria uma de suas prioridades. “Nosso maior compromisso será lutar contra a violência, sobretudo a violência estatal. Isso significa, dentre outras coisas, lutar contra o assassinato de jovens pobres e negros, lutar contra um direito administrativo que rouba camelôs, expulsa crianças da escola, fecha postos de saúde, recolhe pertences de pessoas em situação de rua, e permite agressão contra todos os excluídos e marginalizados da nossa sociedade”, disse.
Depois de negociações com o governo, a agenda da missão da ONU incluirá: de 2 a 4 de maio: encontros com autoridades em Brasília; de 5 a 8: visita ao território yanomami, em Roraima 9 a 10: visita a Mato Grosso do Sul, para examinar caso de guarani-kaiowá : 11 e 12: ida à comunidade de Jacarezinho, no Rio
O Brasil já estava no radar da representante da ONU. Ela, em 2021, citou o país pela primeira vez de forma explícita ao falar da questão do genocídio. Numa reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, naquele momento, a situação dos indígenas foi apontada como alarmante. Na região das Américas, estou particularmente preocupada com os povos indígenas. No Brasil, Equador e outros países, eu peço aos governos para proteger comunidades em risco e garantir justiça para crimes cometidos”Wairimu Nderitu, em 2021 Entre diplomatas brasileiros, a referência ao Brasil por parte de uma assessora da ONU foi considerada como preocupante, colocando o Brasil no foco internacional.
O governo Bolsonaro rejeitava a tese de genocídio e adotava uma postura dura nos debates sobre o assunto. A citação inédita do Brasil como exemplo de preocupação levou o assunto a um novo patamar e acendeu o sinal de alerta dentro do governo Bolsonaro. Em julho de 2021, o Itamaraty pediu direito de resposta na ONU para deixar claro que as instituições nacionais dão respostas e que não havia necessidade de que o tema seja levado a instâncias internacionais. “O Brasil reitera o seu compromisso no combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e outras intolerâncias relacionadas”, disse a delegação brasileira na ONU, naquele momento. À época, o governo também afirmou seguir “todos os esforços para promover e proteger os direitos dos povos indígenas” e “investigar violações”.