Imprensa deixará fascistas mentirem na CPMI?

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Foto: Getty Images

Entre muitos erros, setores da imprensa e parte do colunismo cometem um imperdoável, que deve se mostrar na cobertura da CPI e pode ter desdobramentos graves. Que erro é esse? Igualar petismo e bolsonarismo como faces opostas de uma mesma moeda ou como posicionamentos polares na política. Isso está estupidamente errado ou é militância ideológica obscurantista. É claro que é absolutamente legítimo não gostar do PT, de Lula e das escolhas do partido e do presidente. Mas suas ações e opiniões — que oscilam, entendo, entre a centro-esquerda e a centro-direita — estão no campo democrático. É fácil demonstrá-lo. Pode-se dizer o mesmo do bolsonarismo?

Nem é necessário ir tão longe e voltar às origens da legenda, no enfrentamento ainda da ditadura. Fiquemos na história mais recente. Dilma Rousseff foi deposta num processo de impeachment — e sem ter cometido crime de responsabilidade, o que, a esta altura, é de clareza solar —, e o partido deixou o poder sem apelar à violência. Reagiu por intermédio dos canais legais e institucionais, ainda que as contas daquelas supostas pedaladas tenham de ser refeitas em benefício da história. Lula foi condenado sem provas — Sergio Moro sempre refuga quando convidado a dizer em quais páginas de sua sentença estão as evidências da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (NÃO ESTÃO NA SENTENÇA) —, e o caminho, mais uma vez, foi o da resistência política. Assim, houve, também nesse caso, uma reação DESPROPORCIONAL: o líder maior do partido foi encarcerado CONTRA A LEI. Mas lutou para recuperar seus direitos políticos DENTRO DA LEI. Não gostar das teses do partido ou do governo em curso há de ser coisa distinta de lhes negar as devidas credenciais civilizatórias. E o bolsonarismo? O fato de seu líder, ter sido eleito em 2018 e ter chegado perto da reeleição em 2022 não torna suas postulações afinadas com o estado de direito. O eventual apelo popular de uma determinada corrente, mesmo quando temporariamente majoritária — os vários fascismos gozaram de enorme adesão popular num determinado período —, não a torna democrática. Jair Bolsonaro se comportou como um golpista ao longo de quatro anos de mandato, e, sob sua inspiração — entre silêncios e meias palavras —, seus seguidores tentaram efetivamente dar um golpe. Mais do que isso: há evidências em penca da contaminação de órgãos de Estado, sem a qual as violências do dia 8 de janeiro não teriam sido possíveis. Vamos ver como se vai dar a cobertura da CPMI pela imprensa. Há sinais que são francamente ruins e preocupantes. O fato de que dois campos vão se digladiar no curso da investigação congressual não os torna igualmente legítimos perante a coisa investigada. Caso se tome esse caminho, o jornalismo dará, com as exceções de praxe, mais uma vez, a sua contribuição à fascistização da vida pública. Já basta todo o mal que fez com a adesão cega à Lava Jato, causa original do abismo de boçalidade em que caiu o país. É o exercício livre da oposição — não pode ser submetida senão às leis a que se verga também o mandatário de turno — que demonstra se um regime é ou não democrático. Afinal, também há governos nas tiranias, certo? Assim, não se está aqui a contestar o direito de se opor. Ocorre que esta CPMI nasce sob o símbolo da má-fé e da impostura. Aqueles que se animaram a pregar a investigação, assim como as suas correias de transmissão no lixão das redes sociais, não querem apurar a tentativa de golpe; não buscam identificar os seus principais agentes; não estão interessados em punir os focos de desestabilização nos aparelhos do Estado — incluindo as Forças Armadas —; não querem chegar aos financiadores do caos; não têm interesse em buscar seus autores intelectuais; não objetivam evidenciar os liames óbvios entre a articulação criminosa e o governo anterior. Afinal, não custa lembrar, a PGR já denunciou 1.300 pessoas. As primeiras 100 já foram tornadas rés pelo Supremo. E todas elas, sem exceção, têm uma só inspiração: Jair Bolsonaro. Imagens do Palácio do Planalto, do dia da invasão, mostram como agiu o GSI, sob o comando formal apenas do general Gonçalves Dias. Na verdade, aquele era, até pelos homens que aparecem nos vídeos, o gabinete do general Augusto Heleno — e, pois, de Bolsonaro. Acusar Lula por aquilo que se viu no Palácio do Planalto corresponde a atribuir a Rosa Weber responsabilidade pela depredação do Supremo e a Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), respectivos presidentes da Câmara e do Senado, pelo ataque ao Congresso Nacional. Como esquecer? Quando o Parlamento foi invadido, Rosa mandou uma mensagem por escrito para Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal: “Já entraram no Congresso!” Ele, então, respondeu que “todas as forças de segurança estavam nas ruas”. Já sabemos que é mentira. E passou à presidente do STF, pasmem!, o telefone do delegado Fernando de Souza Oliveira, que respondia interinamente pela Secretaria de Segurança Pública. O titular, Anderson Torres, agora preso, estava em Miami. Assumiu a pasta, com Brasília ocupada por golpistas, e tirou licença em seguida.

É claro que a CPMI é uma desnecessidade porque tudo está sob investigação. Reitero: já são 1.300 as denúncias apresentadas, e a apuração ainda está em curso. Dificilmente, num caso assim, a comissão chegará mais longe do que a Polícia Federal, tendo como foro o Supremo. A CPMI é uma inconveniência porque cria crispação política — não há como — num momento em que país e o governo têm outas urgências, dado que se está levando adiante o caso. E, finalmente, a CPMI é uma aberração porque seus grandes entusiastas também eram entusiastas, vejam vocês, do golpe. Não é espetacular? Algumas de seus defensores mais estridentes, inclusive nas línguas de esgoto disfarçadas de imprensa, eram propagandistas da intervenção militar, afirmavam a insegurança do sistema eletrônico de votação e alimentaram a farsa de que teria havido fraude. Por que, indaga-se, gente com tal comportamento criminoso quer a comissão senão para transformá-la num picadeiro mambembe, dando curso a teorias conspiratórias sem fundamento, buscando criar factoides para dar vida a um “líder” que fugiu do país antes do término do mandato, passou três meses homiziado em Orlando e, no seu retorno, mostra-se incapaz, como sempre foi, de apontar um caminho que não seja… o golpismo? A comissão será mais uma vitrine.

Torço, como em qualquer caso, para que a imprensa faça uma cobertura independente, apartidária e isenta. Só espero que não seja independente do estado de direito. Só espero que não seja apartidária entre o Partido da Democracia e o Partido da Desordem Fascistoide. Só espero que não seja isenta entre a corda e o pescoço. Ou atuará contra o estado de direito, contra a democracia e contra o pescoço. A exemplo do que fez durante a Lava Jato. Para a desgraça do país. Inexiste equidistância entre o estuprador e sua vítima ou entre o golpista e o golpeado. A menos que se faça uma aliança objetiva com estupradores e golpistas. Nesse caso, não se tem isenção, mas crime moral, ético e político.

Uol