Montadoras de veículos cogitam deixar o Brasil

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Foto: Reprodução

Há o que se aprender sobre a relatividade dos números com os recentes resultados obtidos pela indústria automobilística brasileira. A produção de veículos aumentou 37% em março, em comparação a fevereiro. Ela também cresceu 20% em relação a março do ano passado. Registrou ainda um avanço de 8% nos primeiros três meses de 2023, ante o mesmo período de 2022.

Visto por esse ângulo, tudo parece excelente. E seria, não fosse o fato de o primeiro trimestre do ano passado, ou seja, a base de toda a comparação, ter sido o pior momento do setor desde 2004 – em quase duas décadas, portanto. Assim, em 2023, as montadoras estão num nível apenas ligeiramente superior (exatos 8%) ao que estiveram numa fase péssima.

E o atual patamar parece tão desconfortável que Márcio de Lima Leite, o presidente da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), entidade que reúne as principais indústrias desse segmento, acredita que fábricas do ramo, a maioria de porte global, podem deixar o país. Algo que surpreende, mas já ocorreu com a Ford, em 2021.

Leite não diz que essa possibilidade está em debate, nem sequer que haja candidatas para a debandada. Afirma que, para chegar a tal conclusão, faz uma “análise de mercado”. Com base em quais dados e a partir de qual lógica? É o que ele explica a seguir, em entrevista ao Metrópoles, na qual também trata das reais chances de prosperaram no Brasil tanto o “novo” carro popular como os veículos elétricos.

Como o senhor analisa os resultados do primeiro trimestre da indústria? Afinal, eles foram bons ou ruins?

Os resultados de março devem ser comemorados. Mas, quando fazemos uma comparação entre o primeiro trimestre deste ano e o mesmo período de 2022, temos um crescimento de apenas 8% da produção. E o problema é a base de comparação. Ela é muito ruim. O primeiro trimestre do ano passado foi o pior da indústria desde 2004. Na ocasião, o mercado parou por causa da falta de insumos, como os semicondutores (os chips). Agora, o limitador é a falta de demanda.

Daí a paralisação de linhas de produção em diversas montadoras nos primeiros meses deste ano?

Exato. Tivemos oito paradas e dois turnos desativados no primeiro trimestre. Isso quer dizer que verificamos um crescimento, mas é uma produção muito baixa em relação à média histórica do setor.

E as paralisações vão continuar?

Sim. Estamos percebendo novos movimentos de algumas montadoras, discutindo paradas com os sindicatos. Esse é um cenário que não mudou. Abril continua sendo um mês com muitos desafios para a indústria.

As montadoras brasileiras também estão perdendo terreno em alguns mercados no exterior. O que ocorre nesse campo?

Nós tivemos um crescimento das exportações para o Chile e para a Colômbia, mas, agora, elas estão diminuindo. O que vimos foi um aumento da participação de produtos asiáticos nesses países. Então, estamos perdendo competitividade no nosso quintal, no sentido de serem mercados que fazem parte da nossa casa, por assim dizer. Mas isso também está acontecendo no Brasil. Veículos de todos os tipos vindos da Ásia representavam cerca de 2% do mercado nacional há poucos anos. Hoje, eles chegam a 3,5% e 4% do total.

Por conta desse quadro, o senhor já chegou a cogitar na saída de montadoras do Brasil. Existe esse risco?

É o mercado que vai ditar isso. Hoje, ele está muito baixo. Se não trabalharmos para aquecê-lo, vejo isso como algo muito próximo de acontecer. Não tenho dúvida de que, sim, pode acontecer. Principalmente, com essas importações. As montadoras que não têm volumes expressivos de produção vão fazer os cálculos. Elas têm de investir em tecnologia e muitas vezes a conta não fecha. Então, esse mercado precisa crescer e dar sinais de recuperação. Coisa que não estamos conseguindo até o momento.

Essa possibilidade é mais crítica em algum setor?

Não estou dizendo que as empresas vão sair ou que existem conversas nesse sentido. Faço uma análise de mercado. Quando muitas montadoras vieram para o Brasil (o auge foi em meados da última década), o mercado estava em 3,8 milhões de unidades por ano e estudos apontavam que esse número poderia chegar a 4,5 milhões. E nós estamos na casa dos 2,1 milhões, com produção de 2,3 milhões. Então, é muito baixo. Num mercado encolhe, é natural ter um número menor de participantes.

Qual é o maior problema do setor hoje?

É a questão dos juros. Nós apoiamos a autonomia do Banco Central e parabenizamos a coragem com que ele tem conduzido essa questão. Mas, na nossa visão, os juros estão mais altos do que poderiam estar no Brasil.

Mas mudar os juros não é tarefa simples. Qual a proposta da indústria para esquentar o mercado de forma mais rápida?

Temos um trabalho com várias propostas para aumentar a competitividade do setor, mas a maioria para médio e longo prazos. Mas, o que poderia ser feito de imediato, é a renovação da frota. Essa não é uma agenda só de aquecimento do mercado. Ela tem um viés socioambiental. Propusemos ao governo a liberação do uso do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) para a compra de veículos. O Chile teve uma experiência muito bem-sucedida nesse campo.

Como funcionaria?

Não seria a liberação total. O trabalhador que tem um carro que vale R$ 30 mil, por exemplo, se puder sacar uma parte do FGTS, faz a troca. Poderia ser até de um usado velho para um usado mais novo. Seria um aquecimento de todo o setor, poderia haver uma explosão de vendas. Essa é uma das ideias em discussão e ainda veremos o quanto pode avançar.

O quanto a frota brasileira é antiga?

Nos últimos três anos, houve mudança radical do consumidor. Ele foi para o carro mais velhinho, acima de 12 anos. O setor de seminovos, com até três anos de uso, desaqueceu e as vendas de veículos zero também. A frota atual é a mais antiga dos últimos anos. Passou de dez anos. Essa mudança foi acentuada na pandemia.

Como está a discussão para ressuscitar o carro popular no Brasil, cuja primeira versão foi lançada nos anos 1990?

Essa também seria uma forma de aquecer o mercado. A ideia começou com as concessionárias, os revendedores de veículos. Eles queriam ter um produto mais acessível para oferecer ao consumidor. O governo veio conversar com a Anfavea, mas a discussão está muito concentrada no preço do produto e, por questões de regulamentação, não podemos debater esse tipo de tema.

Mas a ideia inicial é de que os populares custem até 50 mil. Hoje, os carros de entrada saem por R$ 70 mil. É possível baixar tanto o preço sem abrir mão de questões como a segurança e nível de emissão de poluentes desses veículos?

Tudo depende do que vai ser negociado. Hoje, para um carro que custa R$ de 65 mil, os impostos representam 30% desse valor. Sem eles, o preço cairia para algo como R$ 45 mil. Existem ainda alguns itens de tecnologia que muitas vezes o consumidor não quer, ele não precisa, como as centrais de multimídia. Algumas montadoras carregam mais nos opcionais, outras menos. Mas os veículos de entrada já são simples, de fato não há tanto espaço para mexer no preço.

E quais são as perspectivas para o carro elétrico no Brasil?

Primeiro precisamos definir por que o Brasil precisa do carro elétrico e em qual velocidade. Ele é interessante como uma tecnologia a mais para que a indústria possa oferecer ao consumidor. Ele também contribui com a descarbonização. Mas, aqui, temos a opção do etanol e dos biocombustíveis. Na Europa e nos Estados Unidos, a situação é diferente e existem muitos incentivos para essa mudança.

Quais?

Os americanos, por exemplo, oferecem subsídios de até US$ 7,5 mil para quem compra um elétrico. O Brasil não vai fazer isso. O governo não tem esses recursos. Também precisamos trazer esse assunto para a nossa realidade. Só o investimento em uma fábrica de baterias é algo em torno de US$ 4 bilhões. Com um mercado baixo como o nosso, é difícil tornar viável algo desse tipo.

Então, a produção de elétricos não é algo que vai ocorrer tão cedo no Brasil?

Já estamos produzindo caminhões e ônibus elétricos. Acredito que vamos começar a fabricar outros veículos, em todos os segmentos, em dois anos. Mas isso não vai acontecer em larga escala. Também temos de tomar cuidado para não abrir tanto esse mercado para importações. Os investimentos são altos e é preciso dar tempo para que possam valer a pena.

Metrópoles