Pela primeira vez PT cria um plano fiscal austero
Foto: Leo Pinheiro/Valor
Para o sociólogo e escritor Sergio Abranches, a principal novidade nos primeiros cem dias do terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva é a tentativa de combinar as políticas sociais que o PT sempre defendeu com um ajuste fiscal desta vez criado e defendido pelos próprios petistas.
A diferença notável, destaca, é que nos governos anteriores do partido a política fiscal mais rígida era adotada a contragosto. Agora “é da cabeça deles”, diz. “Não dá para vir depois e dizer que é uma política neoliberal.”
Criador do conceito do presidencialismo de coalizão, expresso pela primeira vez em um artigo publicado em 1988, Abranches avalia que a governabilidade ficou muito mais difícil após a implosão do modelo de disputa liderado por partidos âncoras, PT e PSDB, que predominou entre 1994 e 2014 e foi enterrado em 2018 com o triunfo de Jair Bolsonaro (PL).
Entende, entretanto, que Lula está sabendo se adaptar ao novo “ecossistema político”, agora povoado por um número maior de partidos médios, Centrão anabolizado e concentração maior de poder nas mãos dos presidentes da Câmara e do Senado. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Qual que é a marca forte dos 100 dias do governo Lula?
Sergio Abranches: É a tentativa de compatibilizar uma política social, que é típica do Lula e do PT, com uma política fiscal, que nunca foi um forte deles. Embora Lula sempre tenha dito que fez superávit nos primeiros governos dele, isso é verdade, sempre houve muita pressão interna nesse campo. Não é uma política orgânica do PT fazer ajuste fiscal. Mas agora é. Então o ajuste fiscal, pela primeira vez, virou uma política do PT.
Valor: É um governo petista mais fiscalista do que os anteriores?
Abranches: Não é que seja mais fiscalista. É que agora ele está oferecendo uma política fiscal ambiciosa, do ponto de vista dos esforços, sem as mesmas resistências que havia no passado. Antes, eles adotavam uma política que não era deles, nunca foi considerada como deles. Adotavam a contragosto. Agora estão adotando uma política que foi formulada por eles, é da cabeça deles. Não dá para vir depois e dizer que é uma política neoliberal. Agora é uma política do governo do PT. Está sendo enviada por Lula e seus ministros ao Congresso.
Valor: O que mais chamou sua atenção nesses 100 dias iniciais?
Abranches: É um governo diferente, de coalizão mais ampla. Então há também uma tentativa de se adaptar ao novo ambiente político, ao novo ecossistema político. Pois há muita mudança na forma como o Legislativo atua.
Valor: Lula venceu, mas deputados que não o apoiaram em 2022 são mais numerosos do que os que o apoiaram. Qual deve ser a tática do governo nesse cenário?
Abranches: Eu acho que o Lula está fazendo o certo até agora nessa questão. O que tem aí é um pouco mais estrutural. Desde 2010 há um processo de redução do tamanho médio das bancadas. Aconteceu com o MDB, o antigo PFL [União Brasil], PSDB e com o PT. No governo Fernando Henrique tinha partido com mais de 100 deputados, não existe mais. Isso gerou uma mudança radical na composição do Congresso, um número muito grande de bancadas médias e pequenas, de 30 ou 40 deputados. Aí a quantidade de pontos de veto no Legislativo passa a ser muito grande. Então a governabilidade ficou muito mais complexa. As coalizões têm de ser maiores, elas são necessariamente mais heterogêneas. Isso cria um baita problema de articulação política. Bolsonaro resolveu isso de uma forma muito fácil. Ele abdicou de fazer política, entregou um orçamento secreto ao Arthur Lira [presidente da Câmara] e foi cuidar do que ele gostava de fazer: motociata, arma. Ele não tinha interesse em política educacional, em saúde…
Valor: Mas e o Lula?
Abranches: Quando chega o Lula, não é que o Congresso seja mais à direita. É que está mais amorfo. Tem mais Centrão do que tudo. Tem muito parlamentar que não tem convicção programática de nenhuma espécie. Então ficou muito mais complicado. E essa redução do tamanho das bancadas foi agravada em 2018 por outra mudança radical, que foi a ruptura de um padrão de formação de governo e oposição que vinha desde 1994. Era um sistema de disputa bipartidária para presidente, PT e PSDB, os dois partidos âncoras. As terceiras forças nunca passaram de 20%. Outros partidos buscavam bancadas com vistas a fazerem parte da coalizão do governo ou, se fosse o caso, oposição.
Quando chega o Lula, não é que o Congresso seja mais à direita. É que está mais amorfo. Tem mais Centrão que tudo”
Valor: Esse modelo implodiu.
Abranches: Sim. Houve o desaparecimento do PSDB, virou nanico, perdeu a vocação presidencial. E tem a redução do PT, que é âncora só na esquerda – não tem capacidade de aglutinação para formar maioria entrando nos partidos de centro ou mais liberais. E o partido do Bolsonaro, PL, também não é âncora de nada. Bolsonaro nunca foi liderança importante no Legislativo, não tem capacidade de aglutinação.
Valor: Qual a consequência?
Abranches: O presidencialismo de coalizão está em crise. A capacidade de formação de maioria no Congresso diminuiu muito. E isso tudo deu muito mais poder aos presidentes da Câmara e do Senado. Porque são eles que manejam uma série de mecanismos de poder. Então agora o processo de articulação do governo com o Congresso é diferente. Tem de passar necessariamente pelos presidentes das duas casas e pelo colégio de líderes, que também é poderoso. Eu vejo que Lula sabe se adaptar a isso. Essa ideia de mostrar as propostas antes para eles, como ocorreu no caso do arcabouço, de prestigiar, isso é uma estratégia. Mostra certo aprendizado.
Valor: Para enterrar o orçamento secreto, foi feito um arranjo de ampliação das emendas impositivas individuais. Deputado agora tem R$ 30 milhões de emendas garantidas, senador tem R$ 60 milhões. Com isso, eles não dependem mais do governo para levar recursos à sua base. Isso faz muita diferença na relação com o Congresso?
Abranches: Faz. E vai depender também de como é que os parlamentares vão se comportar na votação do arcabouço fiscal. Porque esse novo arcabouço enquadra qualquer tipo de despesa, inclusive as impositivas. Então isso aí agora vai ficar submetido ao crivo da nova regra fiscal. Provavelmente vão perceber isso e vai haver uma certa resistência.
Valor: Mas chega a ser um risco à aprovação do arcabouço fiscal?
Abranches: O problema [dos parlamentares] é que não têm muita saída. Porque se são responsabilizados por um desequilíbrio econômico por não aprovarem o arcabouço, isso reduz muito a capacidade de reeleição. Aí os adversários locais vão dizer que o cara é responsável pelo desemprego, inflação.
Valor: O número de partidos começa a declinar. Lula deve se beneficiar disso?
Abranches: De imediato, não. Ninguém vai se beneficiar. Tem 40 anos que eu falo sobre reforma política e sempre falo desse problema. A gente acha que a lei condiciona o comportamento. Aí o sujeito pensa assim: “Se eu mudar a lei, eu vou mudar o comportamento eleitoral”. Não é assim. Tem efeitos não antecipados que depois a gente vai ter que corrigir. Eu sempre fui a favor de acabar com as coligações proporcionais. E, de fato, com isso a fragmentação caiu muito. Mas qual foi o efeito não antecipado? Em compensação, não há mais capacidade de fazer bancadas grandes, como eu disse anteriormente. Os partidos estão envelhecendo, são pouco eficazes do ponto de vista eleitoral. A população está desencantada com todos eles. Então não há mais partido âncora, não tem referência. Ninguém se beneficia disso.
Valor: Não adiantou nada?
Abranches: Pode mudar. Qualquer mudança na regra eleitoral leva alguns ciclos para amadurecer. Então a gente ainda não sabe o que vai acontecer depois de três ou quatro eleições proporcionais sem coligações e com a cláusula.
Valor: Uma questão que se colocou muito fortemente na primeira semana de mandato foi a da relação de confiança do presidente Lula com as Forças Armadas. Mas o tema esfriou. A questão parece resolvida?
Abranches: Foi desinflada. Em grande medida pelas atitudes do comandante do Exército [Tomás Paiva]. E o ministro da Defesa, José Múcio, que é muito jeitoso e detesta arestas, tem conseguido pilotar essa desinflação dos ânimos. Mas o problema está longe de estar resolvido. A gente continua tendo uma questão militar, que tem a ver com o artigo 142 da Constituição [cuja redação, para alguns, sugere as Forças Armadas como uma espécie de poder moderador]. Quando tentarem mudar o artigo, e tem proposta para isso, acho que veremos o veto militar novamente tentar se impor.
Valor: Qual é a dificuldade?
Abranches: Após a ditadura, nós [civis] abandonamos os militares achando que não voltariam para a política. Quando chegou o Bolsonaro e as Forças Armadas foram reativadas na política, havia falta de informação. Nós paramos de estudar o tema como estudávamos no passado. Precisamos entender melhor o que se passa na corporação para poder remover determinadas ameaças do caminho da democracia.
Presidencialismo de coalizão está em crise. A capacidade de formação de maioria no Congresso diminuiu muito”
Valor: Na Colômbia, o presidente Gustavo Petro, de esquerda, mandou para a reserva um grupo grande de generais. Renovou toda a cúpula. Não é o caminho adotado no Brasil. A opção de Lula pela acomodação parece adequada?
Abranches: Falta informação sobre os militares no Brasil. E como eles ficaram muito tempo fora do jogo político, a gente mantém um certo temor de contrariar as Forças Armadas e aí elas reagirem. Tem uma cautela que eu diria excessiva. No caso do Judiciário, por exemplo, isso fica claro na forma pela qual a Lei Anistia tem sido interpretada. Tem essa tolerância em relação à redação do artigo 142, que já foi feito sob temor na Constituinte, com pressão dos militares. São questões que o Brasil não enfrenta. E por isso perpetua essa espada sobre a cabeça da democracia, que é a possibilidade da interferência dos militares para manter a lei a ordem.
Valor: Falando nisso, como avalia o desfecho do 8 de janeiro?
Abranches: Ainda não teve desfecho. Só terá quando os responsáveis pela invasão física das sedes dos Três Poderes, os cabeças e os articuladores, sejam militares, sejam políticos, tiverem punição exemplar. Enquanto não ocorrer, ficaremos com essa outra ameaça importante à democracia. A democracia não pode tolerar esse nível de agressão.
Valor: E em relação ao meio ambiente? Como avalia a fase inicial do governo Lula nessa área?
Abranches: Evidentemente já mudou a maneira pela qual o governo encara a questão. Ter Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, criar o Ministério dos Povos Indígenas e ainda ter um indígena na direção da Funai muda completamente a visão. O problema é que todos os instrumentos estão desarticulados e semidestruídos. A Funai tem de ser recomposta. O Ibama tinha problema há muito tempo, parte do seu quadro já não tem mais condições físicas de ir a campo com a efetividade necessária. Vai precisar concurso, mas isso demanda tempo e dinheiro.
Valor: Mas e o desempenho do governo Lula nessa área?
Abranches: Eu acho que está muito moroso. A Casa Civil não está liberando as nomeações para cargos essenciais de comando nessas estruturas. Então fica pouca gente para fazer muita coisa. Por outro lado, tem razão para estar lento. Não é deficiência de desempenho de quem está na gestão. E porque há mesmo uma fragilidade. A reconstrução é muito mais demorada e mais cara do que a destruição. E é preciso dizer que o receio nas nomeações, seja por causa de corrupção, seja por risco de infiltração bolsonarista, está fazendo com que decisões sejam muito lentas.
Valor: E em relação à questão ambiental propriamente?
Abranches: A questão ambiental brasileira ficou muito mais difícil depois do Bolsonaro. Porque avançou demais a cumplicidade com grileiros, garimpeiros e desmatadores. E isso permitiu que houvesse uma interseção muito mais forte entre esse tipo de crime, o ambiental, e os crimes de contrabando de drogas e de armas. A região Norte tem um quadro muito complicado. Tem o crime organizado muito bem armado, polícias locais corrompidas, falta de pessoal federal para agir. Há um grau de avanço sobre as terras indígenas e outras áreas com muita destruição. Ficou tudo muito mais difícil. Ao mesmo tempo, ficou muito mais arriscado não fazer nada. Porque a mudança climática já está instalada. Está produzindo eventos mais graves, mais extremos, mais danosos e mais perigosos a cada ano. A ação de adaptação à mudança climática tem que ser muito mais ampla. Nisso, não vejo disposição de governo algum de fazer o que precisa ser feito.
Valor: Bolsonaro voltou ao Brasil no momento em que Lula completa 100 dias de governo. Consegue prever o papel que esse personagem vai desempenhar?
Abranches: Acho que será bem menor do que estão imaginando. Ele volta fraco, derrotado. Dizem que poderá liderar a oposição. Mas não tem oposição para liderar, o que tem são fragmentos de partidos que fazem oposição. Todos os partidos que o apoiaram estão divididos ou já aderiram ao governo Lula. Ele tem muito processo para responder na Justiça comum, muito problema pessoal para se dedicar. E, além de tudo, o jogo que ele jogou já ficou conhecido. Ele não é mais um fenômeno. Foi um fenômeno lá atrás, quando ninguém percebeu que estava montando uma base suficiente para vencer. O fator surpresa desapareceu.
Valor: Essa campanha liderada pelo próprio presidente pela redução dos juros, com embate público contra o presidente do Banco Central, não é uma novidade?
Abranches: Lula também pressionou o Henrique Meirelles [ex-presidente do BC] para baixar juros. Ele e o vice da época, o José Alencar. A diferença é que agora tem um componente político-ideológico associado ao Banco Central, algo que faz Lula ser mais agressivo. E também faz o presidente do BC ser mais exigente do que era em relação ao governo Bolsonaro. Tem uma ortodoxia que o BC não mostrou no governo anterior. Isso polariza a política fiscal e a monetária, não é bom. E tem uma resistência grande do governo à ideia de um Banco Central independente.
Valor: O que explica?
Abranches: É um presidente do BC nomeado pelo Bolsonaro e que aderiu ao Bolsonaro. Eu acho que uma parte grande da resistência do Lula tem a ver com as atitudes que o Roberto Campos Neto [presidente do BC] tomou quando era Bolsonaro o presidente. De fazer parte de reuniões ministeriais, de estar no grupo de WhatsApp do Bolsonaro, de ir votar com uma camisa da seleção. Ele descumpriu a necessária regra de neutralidade política que um presidente do BC tem de ter. Até já disse que hoje não faria da mesma forma. O fato é que isso serviu para criar a impressão forte de que o Roberto Campos Neto é um bolsonarista [em 13 de fevereiro, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Campos Neto disse que era importante diferenciar “a proximidade com algumas pessoas da independência de atuação” e citou como evidência da atuação técnica o fato do BC ter subido juros durante o ano eleitoral].
Valor: O senhor acha que tem chance de dar certo?
Abranches: O novo arcabouço fiscal é um modelo engenhoso. Permite escolhas variadas. Então tem chance boa de não sofrer modificações, não ser abandonado numa eventual mudança de governo. E é ambicioso. Não é sem esforço, sem sacrificar algumas convicções do PT e do Lula, que vai conseguir sair de -0,5% e chegar no fim do governo com superávit primário de 1% do PIB.
Valor: E a ênfase que vem sendo colocada na reforma tributária?
Abranches: A reforma tem um atrativo particular para o Lula e para os petistas, que é essa ideia de botar o pobre no orçamento e o rico na arrecadação. Essa insistência na reforma tem muito a ver com duas preocupações principais do Lula: crescimento econômico continuado, coisa que o Brasil não vê há muito tempo, e a ideia de usar o sistema tributário de uma forma que contribua para a distribuição de renda. Com essa estrutura tributária e, portanto, com a estrutura de gastos dela decorrente, o país tem transferido muito mais dinheiro para os ricos do que para os pobres. Nos oito primeiros anos de Lula, o que seu governo transferiu como Bolsa Família e outros programas foi uma fração do que transferiu aos capitalistas, donos de empresas, via BNDES, Caixa e Banco do Brasil. Sem falar nos subsídios diretos do sistema tributário.