Recadastramento do Bolsa Família gera atrasos

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Foto: Amanda Rossi/UOL

O governo Lula realizou um megabloqueio do Bolsa Família entre março e abril, atingindo mais de 1,2 milhão de famílias — o número exato não é conhecido porque o governo se recusa a informar. Falhas na operação estão gerando confusão nos municípios: sistema fora do ar, falta de orientação do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e benefícios bloqueados mesmo sem irregularidades.

Em abril, o MDS bloqueou 1,2 milhão de benefícios do Bolsa Família de pessoas que dizem viver sozinhas. Isso equivale a um de cada vinte beneficiários.

Em março, também houve um grande bloqueio para averiguação de frequência escolar. Questionado pelo UOL desde 4 de abril, o ministério tem se recusado a informar o número de famílias afetadas. O ministério orienta quem foi bloqueado a procurar postos do Bolsa Família nos municípios. Mas o sistema operacional que faz a gestão dos benefícios ficou fora do ar na maior parte do mês em muitas cidades. A demanda também é maior que a capacidade de atendimento. O resultado são pessoas revoltadas e equipes sobrecarregadas. O UOL encontrou filas de beneficiários bloqueados pelo Bolsa Família em unidades do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) na periferia de São Paulo. É no Cras que devem ser feitas as regularizações de cadastro para solicitar o desbloqueio. Bloquearam o Bolsa Família por falta. Mas os meus filhos nunca faltam. Fomos até as escolas para saber o que aconteceu. A frequência deles é de quase 100%. E bloquearam mesmo assim. Estou com os documentos das escolas aqui”.Devanir Moraes, mãe de três filhos, que teve o Bolsa Família bloqueado em março Eu moro sozinho há dois anos. Sou só eu e Deus. Eu alugo o andar debaixo. No andar de cima, vive a dona da casa. Eu era motorista, mas não posso mais trabalhar por problema de saúde. E ainda não consegui aposentar”.Carlos Lourenço da Silva, 62 anos, teve o Bolsa Família bloqueado em março

Os problemas são tantos que equipes responsáveis pelo Bolsa Família nos municípios postaram críticas públicas nas redes sociais do MDS. A pasta chegou a apagar um dos posts que tinha muitos comentários negativos. O UOL ouviu relatos de problemas em quatro estados: Rio Grande do Norte, Ceará, Minas Gerais e São Paulo. A principal queixa é que, enquanto o MDS informa nas redes sociais que o desbloqueio do Bolsa Família é feito pelos municípios, ao mesmo tempo envia mensagens internas para as equipes dizendo que o sistema que faz o desbloqueio está fora do ar. O ministério também diz que os beneficiários bloqueados precisam assinar um termo de responsabilidade nos postos municipais, atestando que preenchem os requisitos do Bolsa Família. Só que o modelo do documento sequer foi enviado para os municípios, que estão tendo que improvisar. Tá um caos sério. Nem na mudança do antigo Bolsa Família para o Auxílio Brasil houve esse rebuliço todo. O que eu tô vendo no dia a dia são pessoas desesperadas, sem saber se vão receber o benefício. São pessoas vulneráveis, [isso] mexe muito comigo. Eu vou adoecer”.Carlilson Medeiros, coordenador do cadastro do Bolsa Família em Triunfo Potiguar (RN) Todo mundo já chega muito bravo. Primeiro, a pessoa vai para outra cidade para sacar o Bolsa Família, porque aqui não tem Caixa. Lá, avisam que o benefício tá bloqueado e mandam vir aqui [na unidade de cadastramento do Bolsa Família]. Mas aqui tá sem sistema. As pessoas acham que é a gente que não quer liberar”Talia de Paula, entrevistadora do Cadastro Único em Ervália (MG) É a gente que enfrenta o povo. Mas não estamos tendo suporte [do governo federal]. O MDS informa para procurar o Cras, mas não estamos conseguindo fazer o desbloqueio, não estamos conseguindo ajudar as famílias. Está uma bagunça, não tem outra palavra. Eu estava sofrendo ameaça, me senti acuada, com medo e tive que solicitar [reforço de] um guarda para fazer a segurança”.Jéssica Lemos, que atua em Riacho de Santana (RN) O ministério faz posts lindos [nas redes sociais]: ‘vá ao Cras, atualize seu cadastro e tenha o desbloqueio e o [pagamento] retroativo’. Mas a gente fica sem saber o que fazer. Explicamos que, sinceramente, não tem previsão [para o sistema voltar]. Só que as famílias estão sem o benefício, que é a principal fonte de renda. Não tem como a pessoa permanecer calma”.Michelle Souza, coordenadora do Cadastro Único em Piquet Carneiro (CE)

Post do MDS com orientações sobre desbloqueio gerou revolta de equipes do Bolsa Família - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram

A maior parte dos benefícios bloqueados são de pessoas que dizem morar sozinhas, grupo que cresceu de forma artificial durante a vigência do Auxílio Brasil, criado por Jair Bolsonaro para substituir o Bolsa Família. São os chamados benefícios unifamiliares. Nos anos do Bolsa Família, de 2003 a 2021, entre 13% e 15% dos beneficiários viviam sozinhos. É uma proporção similar à de domicílios com uma só pessoa na sociedade brasileira. Já em pouco mais de um ano de Auxílio Brasil, o número atingiu 27%.

A explicação está na mudança da lógica de distribuição do benefício social. Em vez de um valor variável, de acordo com o número de pessoas na família, o Auxílio Brasil foi fixado primeiro em R$ 400 e, depois, em R$ 600. Assim, uma família com cinco pessoas recebia o mesmo que uma pessoa solteira. A suspeita do governo e de especialistas é que, para receber o benefício, pessoas alegaram morarem sozinhas quando, na verdade, vivem com uma família que já está na folha de pagamento do programa ou que têm renda maior do que a permitida. Para combater essas fraudes, o governo Lula primeiro anunciou que faria visitas domiciliares, para comprovar que se o beneficiário mora mesmo sozinho. Depois, optou por bloquear um quarto dos benefícios unifamiliares, pedindo que as pessoas compareçam nas unidades municipais do Bolsa Família para se recadastrar. É preciso mostrar comprovante de endereço e assinar o termo de responsabilidade. Mas equipes municipais do programa duvidam que essa estratégia vá acabar com as fraudes. O pessoal vai continuar mentindo [que mora sozinho] do mesmo jeito. Primeiro, porque não tem punição. Então a pessoa pensa: se o fulano recebe há tanto tempo e não deu nada, então eu vou continuar [mentindo no cadastro]”.Carlilson Medeiros, coordenador do cadastro do Bolsa Família em Triunfo Potigar (RN) A visita familiar é mais eficiente [para combater a fraude]. Mas é complicado, porque é muita gente e nós [equipes que gerem o Bolsa Família nos municípios] somos poucos e temos muitas demandas”.Michelle Souza, coordenadora do Cadastro Único em Piquet Carneiro (CE)

Desde 4 de abril, o UOL questiona o MDS sobre o número de bloqueios no Bolsa Família efetuados entre março e abril. Em 6 de abril, a pasta respondeu que “não houve bloqueios em março”. Então, a reportagem apresentou imagens de extratos do Bolsa Família, físicos e online, que comprovam que houve, sim, bloqueios em março. Também relatou entrevistas com dezenas de pessoas que tiveram o benefício bloqueado naquele mês. Depois disso, o ministério deixou de responder aos e-mails do UOL — ao todo, foram oito mensagens sem resposta. No meio tempo, anunciou os bloqueios de benefícios unipessoais em abril. A falta de transparência no Bolsa Família é novidade. Por 16 anos, de dezembro de 2005 a dezembro de 2021 (quando o programa foi substituído pelo Auxílio Brasil), o número de bloqueios foi registrado mensalmente. No período, ocorreram 364 mil bloqueios por mês, em média.

Uol