Exército está cada vez menos tolerante com membros bolsonaristas

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Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO CONTEUDO

Deslealdade. Esse é o mais educado dos adjetivos usados por generais para qualificar o comportamento de integrantes do governo de Jair Bolsonaro que planejaram aliciar comandantes de batalhões e até mesmo de brigadas para passar por cima dos integrantes do Alto Comando do Exército (ACE) que se recusavam a dar um golpe de estado e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Quatro meses após a intentona do dia 8 de janeiro, a fratura criada na instituição não cicatrizou até agora.

Expoentes do bolsonarismo continuam malvistos e desprezados pelos colegas, que se sentem constrangidos a cada nova descoberta feita pela Polícia Federal envolvendo militares da ativa e da reserva que assessoraram o ex-presidente. Na semana passada, a cúpula do Exército se reuniu em Brasília. Tratava-se de uma reunião administrativa, onde a cúpula da Força tratou de seu orçamento e de operações que serão feitas com Argentina, Paraguai e Estados Unidos. Um outro tema, porém, pairava sobre os generais: a situação do tenente-coronel Mauro Cesar Cid.

Para os integrantes do Alto Comando, tudo o que o Exército não precisava agora era de mais problemas. A nomeação do general Marcos Amaro para a chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) parecia normalizar a relação entre o atual governo e a caserna, inclusive com o retorno da segurança presidencial para as mãos do GSI. Amaro é visto pelos colegas como um oficial inteligente e íntegro. Foi instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e conhece a área de informações.

Mesmo a atabalhoada inclusão do general Marcelo Goñes Sabbá de Alencar entre os militares excluídos na “faxina” do gabinete já parecia superada – Sabbá estava havia 9 dias no GSI quando se viu entre os afastados em razão da queda do general Marco Edson Gonçalves Dias, o G. Dias, então ministro-chefe do GSI. Havia entre os generais até mesmo a ideia de mandar Sabbá de volta ao GSI para corrigir a injustiça, mas, por fim, optou-se pela sua nomeação para a 2.ª Subchefia do Estado-Maior, responsável por orientar e avaliar o Sistema de Informações do Exército e sua área digital.

Foi quando chegaram ao comando do Exército as informações encontradas nos telefones celulares do tenente-coronel Cid e do ex-major Ailton Barros, ambos presos pela Polícia Federal sob a suspeita de terem participado de um esquema de falsificação de cartões de vacina contra a covid-19. Um diálogo revelado pela CNN mostrou o coronel Élcio Franco tramando um golpe de estado com o ex-major Barros.

Este último diz que era preciso convencer o general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, do Comando de Operações Especiais (COpEsp), com sede em Goiânia, a mobilizar 1,5 mil homens para prender o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O COpEsp é subordinado ao Comando Militar do Planalto (CMP), então ocupado pelo general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, outra figura-chave nos eventos do dia 8. Dutra era um dos generais que os conspiradores designavam como “melancia” e pretendiam “bypassar”.

Franco, então assessor da Casa Civil, onde trabalhara com os ministros Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto, não demonstra nenhuma contrariedade à proposta do amigo. Antes, Franco trabalhara com Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde. Em comum com Ramos, Pazuello e outros expoentes do bolsonarismo, ele também é um Força Especial (FE), um militar formado no COpEsp, conforme mostrava o broche da caveira com um punhal que Franco costumava exibir no paletó.

A coterie dos Forças Especiais forneceu à intentona do dia 8 alguns dos principais expoentes no campo militar. O tenente-coronel Cid fazia parte dela e estava designado para comandar o 1.º Batalhão de Ações de Comandos, do COpEp. Foi da mesma brigada de Goiânia que saiu o coronel José Placídio Maias dos Santos, que no dia 8 convocou os colegas para o golpe: “Onde estão os briosos coronéis com tropa na mão?” A exemplo de Franco, Barros e outros, Placídio defendia que os colegas passassem por cima dos generais.

Seu modelo era o dos coronéis gregos que deram um golpe em 1967 e instalaram uma ditadura que durou seis anos sob a direção de Georgios Papadopoulos, para impedir a eleição do socialista Andreas Papandreou. Placídio ofendeu o comandante da Marinha, almirante Marcos Olsen, qualificando-o como “prostituta do ladrão” e o desafiou a puni-lo. O FE Placídio trabalhava no GSI com o general Augusto Heleno, outro oficial que saiu chamuscado do governo Bolsonaro, assim como Ramos, Pazuello e Braga Netto.

Todos, em maior ou menor medida, tornaram-se párias para os colegas em razão da deslealdade e da campanha de difamação e ataques movida contra integrantes do Alto Comando. Não há mais convívio entre os dois grupos. A fratura entre os bolsonaristas e a instituição está longe de acabar.

Por enquanto, nenhum dos golpistas é alvo de Conselho de Justificação, que pode declarar o acusado indigno para o oficialato, cassando o posto e a patente. O ACE decidiu aguardar as investigações da Polícia Federal e o processo no STF – o caso e Placídio estão nas mãos de Moraes. Em caso de condenação a mais de dois anos de prisão, os conselhos serão abertos e o militar, ainda que na reserva, será expulso.

Na avaliação dos generais, os integrantes da ativa envolvidos nos fatos são poucos. Nenhum comandante de organização aderiu à intentona do dia 8. Quem se moveu nas redes sociais ficou apenas nos chamados “atos preparatórios”, sem ultrapassar o limite que qualificaria seus atos como tentativa de crime contra o estado democrático de direito. Pelo menos é o que mostram, por enquanto, as investigações. Todos seriam somente valentões de WhatsApp. “Queria ver botar a cara aqui na frente”, disse à coluna um dos generais do ACE.

Mesmo o caso do coronel Cid é visto com cautela. Os generais negam que o pai do preso, o também general Mauro César Lorena Cid, que fora colega de turma de Bolsonaro na AMAN, esteja contrariado com o Alto Comando. O coronel não foi destratado nem humilhado. O comandante da Força, general Tomás Paiva, considera que Cid deve responder pelo que fez. Mas nada será feito contra o coronel de maneira açodada. As consequências do governo Jair Bolsonaro e da contaminação ideológica ainda incomodam. E cada vez que novos fatos surgem, uma frase começa a ser repetida: “Nunca mais”. A lição foi aprendida.

Estadão