Ministra da Saúde fala sobre o que encontrou

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Foto: Walterson Rosa/MS/

Pela primeira vez em setenta anos de existência, o Ministério da Saúde é dirigido por uma mulher. Meses antes de assumir a pasta, a então presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade, já tinha o nome cotado para a posição. Sua missão: reorganizar o Sistema Único de Saúde (SUS) e dar um olhar mais empático e científico para as demandas da população depois da crise pandêmica e do descalabro do governo Bolsonaro, marcado por trocas de ministros e ataques infundados às vacinas. Após assumir o cargo, a socióloga e professora de 65 anos conta ter deparado com um cenário caótico: programas essenciais descontinuados, medicamentos vencidos e uma tragédia sanitária no território ianomâmi. Em entrevista a VEJA, a ministra comenta fraudes atribuídas à gestão do ex-presidente e a retomada do protagonismo do Brasil nos índices de coberturas vacinais. Ela afirma já ter iniciado um diálogo com as entidades médicas para buscar convergências, sedimentar práticas baseadas em evidência científica e ampliar o Mais Médicos num país que ainda sofre com a desigualdade no acesso à saúde.

O ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo acusado de inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19. O que dizer? Apurar esses fatos e esclarecer o ocorrido é dever do Estado e um ato de respeito com os brasileiros. Nem todas as vítimas da pandemia tiveram acesso à vacina em tempo e carregamos o trágico marco de 700 000 vidas perdidas nesse período tão doloroso.

Se for comprovada a denúncia, que lições tirar do episódio? As informações contidas no certificado de vacinação são essenciais para a definição de políticas públicas e nos mostram qual caminho devemos seguir para proteger a população. Além da operacionalização da vacinação, a vigilância epidemiológica de um país depende da responsabilidade de todos para registrar e tratar os dados de imunização.

Afinal, qual situação a senhora encontrou ao assumir o Ministério da Saúde? Era um cenário crítico, com muitos programas descontinuados, represamento de três anos de demandas, como o credenciamento de agentes comunitários, e a total descaracterização de diversas ações. Encontramos um Programa Nacional de Imunizações (PNI) sem comitê e sem força de poder para dar suporte durante a pandemia. Além de estoques de vacinas, medicamentos e outros insumos vencidos. Era clara a necessidade de uma reestruturação.

Quais foram os desafios dos primeiros passos nessa reorganização? Talvez o aspecto mais desafiador seja recuperar o papel de coordenador do Ministério da Saúde. Os municípios e estados tomaram a frente nas ações nesses últimos quatro anos, e isso foi um mérito. Mas, para que tenhamos equidade e um sistema universal capaz de atender 214 milhões de habitantes, é preciso restabelecer nosso papel de coordenação nacional. Uma grande fortaleza do SUS é ser uma política de Estado, que foi muito afetada no governo anterior, mas tem uma grande resiliência. Nesse sentido, duas medidas foram tomadas: o lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação e um programa de redução de filas para cirurgias.

“Tenho dito que médicos brasileiros serão prioridade (no programa Mais Médicos) e ponderado que vamos trabalhar para aperfeiçoar a revalidação dos diplomas de estrangeiros”

A entrada da senhora na pasta coincidiu com a grave crise de saúde no território ianomâmi. Como estão lidando com ela? O povo ianomâmi se alimenta por meio de pesca e coleta de frutos e raízes, e o garimpo ilegal desestruturou esse ambiente e sua sociedade. A situação se agravou por causa de uma política de descaso, com o Estado abrindo mão do poder de regulação econômica e social sobre atividades de caráter predatório. Encontramos crianças e adultos desassistidos com doenças respiratórias, denúncias de roubo de medicamentos, enfim, uma situação de grande dramaticidade. Mas nada se comparou a ter ido lá. Com um quadro tão grave, determinamos o estado de emergência sanitária. E ainda é uma emergência. Mas conseguimos inaugurar o Centro de Referência em Saúde Indígena em Surucucu, Roraima, e estamos realizando ações para o fornecimento de água potável à comunidade.

O programa Mais Médicos foi amplamente criticado pela classe médica e escanteado no governo anterior. Ele renascerá? Estamos trabalhando pela retomada do Mais Médicos, desenvolvendo meios de fixar, por pelo menos quatro anos, profissionais em determinadas localidades para mantermos a continuidade na assistência. Os apontamentos da classe médica são sempre direcionados à revalidação dos diplomas de profissionais estrangeiros, o Revalida. Mas tenho dito que os médicos brasileiros serão prioridade no programa e ponderado que vamos trabalhar com o Ministério da Educação para aperfeiçoar o exame do Revalida.

Mas como garantir que os médicos trabalhem nas áreas mais remotas, de evidente necessidade? Estamos no caminho de fortalecer o programa e ampliar os incentivos aos médicos, inclusive na dimensão educacional, por meio da oferta de mestrados. Publicamos um edital com 6 200 vagas para adesão e chamamento dos municípios e abrimos 1 000 vagas só para a Amazônia Legal, considerando o vazio que essa região enfrenta.

Ao longo da pandemia, houve médicos prescrevendo remédios sem eficácia contra a Covid-19 com o aval do Conselho Federal de Medicina (CFM). A senhora já conversou com a entidade? Nosso governo se pauta por ciência, inclusão e democracia. Temos feito um esforço para dialogar com a categoria médica. Infelizmente, ainda vemos manifestações isoladas de médicos propagando fake news, mas estamos em contato com o CFM e fazendo reuniões para buscar convergências a favor da população.

Durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) houve a promoção de um tratamento baseado em pseudociência, a fosfoetanolamina, batizada de “pílula do câncer”. Como pretende lidar com casos do gênero, caso surjam? Essa questão acompanha a humanidade. Na gripe espanhola (1918-1920), não tinha vacina e recomendavam de tudo. Até a cloroquina foi preconizada. É por isso que estamos reestruturando nossas equipes para a difusão da comunicação científica e, assim, alertar as pessoas para que não confiem em qualquer informação nem em soluções mágicas para problemas de saúde.

Um fenômeno debatido nos últimos anos é a queda nas coberturas vacinais. O que planejam para revertê-la? Temos de começar buscando os pais para que todas as crianças sejam vacinadas. O país já teve cobertura para sarampo e pólio na faixa dos 90%, mas hoje não chega a 70%. É preciso entender que vacina e água potável são conquistas da civilização: aumentam a expectativa de vida e salvam vidas.

A secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente, Ethel Maciel, citou a criação de um plano para a doação de insumos próximos ao vencimento, inclusive para outros países. É coerente a distribuição para o exterior com tantos problemas internos? O Brasil tem longa tradição de ajuda humanitária junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), e doações já têm sido feitas para nações com o mesmo nível de desenvolvimento da nossa. O plano contempla insumos diversos, de luvas de proteção cirúrgica a anticoncepcionais. Há até mesmo vacinas contra Covid-19, estocadas devido à campanha do governo anterior contra os imunizantes.

Mas, para evitar ao máximo o estoque e o vencimento de medicamentos e insumos, vamos fazer primeiro a distribuição deles pelo país. Mas há algum projeto para que o país se torne mais autossuficiente em insumos e medicamentos, problema escancarado pela pandemia? Esse já era um tema no Brasil na década de 1970, quando se propôs um programa nacional de autossuficiência em imunobiológicos (vacinas e medicamentos em geral injetáveis). Acreditamos que a área da saúde é uma política social, mas também um fator para o desenvolvimento econômico e sustentável do país. Por essa razão, queremos que, em dez anos, 70% da produção nacional desses insumos seja feita em parceria com a iniciativa privada. Isso reduzirá a vulnerabilidade do Brasil.

“O país já teve cobertura para sarampo e poliomielite na faixa dos 90%, mas hoje não chega a 70%. Vacina e água potável são conquistas da civilização”

Há anos a Tabela SUS, que remunera profissionais e instituições, é tida como defasada. Como pretendem desatar esse nó? É um fato que precisamos de uma revisão. E já começamos a propor mudanças na tabela com as cirurgias eletivas, tendo agora a possibilidade de pagar duas vezes mais por elas. Estamos trabalhando numa nova política envolvendo procedimentos de alta e média complexidade. Mas é necessário que tenhamos um financiamento robusto para o SUS, à altura do sistema, e associado à ideia de integrar a atenção primária à especializada.

Acredita que é possível ampliar ou acelerar a incorporação de novas tecnologias e tratamentos pelo SUS? Essa frente é importantíssima no ministério. Temos enfatizado as doenças crônicas, como o câncer, e as doenças raras, cujos tratamentos têm muito impacto orçamentário. No entanto, é preciso incorporar medicamentos de acordo com a segurança sanitária e a sustentabilidade do sistema.

A senhora é a primeira mulher a assumir o Ministério da Saúde. Quais devem ser as bandeiras da sua gestão para a população feminina? A nossa visão é a de um cuidado integral com a saúde física, psíquica, emocional e, ao mesmo tempo, um olhar não apenas pelo ângulo da saúde maternoinfantil, porque muitas mulheres não são mães. Esse cuidado é importante para que elas tenham autonomia sobre o seu corpo e sejam respeitadas pelas políticas públicas. Com essa visão, lançamos a portaria da dignidade menstrual para que as mulheres em situação vulnerável tenham apoio do Estado no acesso a absorventes, por exemplo.

Tivemos episódios de violência nas escolas, algo que se conecta à falta de ações para a saúde mental dos mais jovens. Qual será a contribuição do ministério nessa força-tarefa? Criou-se no Brasil um ambiente que estimulou o discurso de ódio, e isso precisa ser superado para resolvermos a questão da violência nas escolas. Estamos reestruturando o departamento de saúde mental, que sofreu muitos reveses no governo anterior, para fortalecer a rede de atenção psicossocial em todo o Brasil. A outra linha de atuação é o fortalecimento do programa Saúde na Escola, criado em 2007. Ele contemplava de alimentação a prevenção da violência, só que foi descaracterizado nos últimos anos. Precisamos fazer um trabalho preventivo nesse sentido, valorizando uma cultura de paz.

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