‘Bolsonaro deu aula de inelegibilidade’, diz criador de Lei
Foto: Givaldo Barbosa/Agência O Globo
Um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, que completou 13 anos no início deste mês, o ex-juiz Márlon Reis, secretário na Comissão Nacional de Direitos Difusos e Coletivos da OAB, afirma que, sem a norma criada por iniciativa popular, o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), não aconteceria. Isso porque, antes da lei, processos de abuso político contra candidatos derrotados não prosperavam. Era preciso comprovar seu impacto na disputa eleitoral. Na prática, abria margem à impunidade.
O senhor tem ressaltado que a Lei da Ficha Limpa foi fundamental para que hoje ocorresse o julgamento de inelegibilidade de Bolsonaro. Qual é a influência no caso?
Sem a lei, o julgamento não aconteceria. Bolsonaro não seria condenado e, mesmo que isso fosse possível, não ficaria de fora da próxima eleição presidencial. O ex-presidente do TSE, ministro Nelson Jobim, me disse uma vez, em 2002, que na época nós utilizávamos a doutrina de Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: “Ao vencedor, as batatas”. A gente esquecia o derrotado, inclusive os abusos que esse candidato pudesse ter cometido, que podiam ser às vezes até piores do que os de quem venceu a eleição. Isso significou tanto para mim que, quando chegou a redação da Lei da Ficha Limpa, decidi inserir um dispositivo: “Para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”. O argumento de que era preciso o abuso ter impacto na eleição era uma das maiores fontes de impunidade. Até os eleitos escapavam. Além disso, a inelegibilidade por abuso de poder era de três anos. Você ficava inelegível e já podia concorrer para o mesmo cargo na eleição seguinte.
E a gravidade está bem caracterizada nos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral?
Bolsonaro deu uma aula de inelegibilidade, com todos os elementos necessários. É um ótimo caso para dar aula de Direito Eleitoral e mostrar o que é um abuso de poder. Bastava ele ter se aproveitado de um ambiente público, em um evento oficial acompanhado pela imprensa, no qual, portanto, ele soubesse que qualquer coisa que dissesse repercutiria. Bastava esse mau uso da verba pública para praticar um ato de campanha que nada tinha a ver com o público para o qual se dirigia para confrontar o sistema eleitoral brasileiro. Mas ele foi além: isso foi veiculado em canal público de TV. Com isso, perfez outro tipo de abuso de poder, o de uso indevido dos meios de comunicação.
A inclusão de minuta golpista no processo é questionada pela defesa, que compara com o julgamento, em 2017, da chapa Dilma-Temer. Faz sentido?
Existe um condutor da instrução, que é o relator. O relator tem a possibilidade instrutória, inclusive, o próprio ministro Benedito Gonçalves citou o dispositivo expresso da mesma lei de inelegibilidade que prevê a possibilidade da inclusão (da prova). Mas eu, particularmente, entendo que esse documento não tem a menor importância para o julgamento. Ele não depende da minuta. Mesmo que ela fosse ignorada, tudo permaneceria intacto. É um gasto de energia desnecessário da defesa.
O relator, Benedito Gonçalves, tem tido protagonismo no caso. O ministro é o único negro no STJ e no TSE. Precisamos de mais Beneditos nos tribunais?
Comemoramos o fato de ter um ministro negro, mas lamentamos isso ser tão raro. Se fosse respeitada a proporcionalidade da população brasileira, os magistrados e magistradas negros seriam maioria. É um retrato expresso de um racismo estrutural que impede a ascensão de pessoas negras. É urgente que se pense a democratização do Judiciário dentro da perspectiva de que ele se transforme num espaço em que estejam presentes os diversos segmentos da sociedade na sua exata dimensão. Caso contrário, o Judiciário sempre julgará com o olhar só de uma parte da população. Agora, é muito irônico e curioso que o futuro e a vida política de Bolsonaro estejam nas mãos de um integrante de um grupo social que ele sempre fez questão de agredir com seus excessos verbais.
Lula deve considerar essa realidade na escolha para a próxima vaga para o STF?
É preciso observar a diversidade na composição dos tribunais. Faço parte do coro que é bastante grande para a nomeação de uma mulher negra.
Pouco mais de 13 anos depois de entrar em vigor, que balanço o senhor faz do impacto da Lei da Ficha Limpa no país?
Algumas pessoas de fora do meio jurídico podem acreditar que o papel dela devesse ser varrer do mapa todo tipo de erro. Mas isso não existe. A política é um espaço de disputa de poder. Não é exatamente um lugar onde se encontre mais a santidade. O que a lei vem fazer é evitar situações mais grosseiras e grotescas.
A lei selou o destino de Deltan Dallagnol, condenado à perda de mandato. Mas, a cassação de quem tem mandato ainda é rara. Quais são as dificuldades?
No caso da lei das inelegibilidades, defendo que haja antecipação da análise da vida pregressa do candidato. Isso poderia ser feito no começo do ano eleitoral em que se apresentariam aqueles que cogitam se candidatar de tal maneira que a sociedade já saberia se poderia ser ou não candidato.