Confira perfil de eleitores que não votaram em 2022
Foto: Ricardo Stuckert/PR
No auge das articulações pré-eleitorais, entre o final de 2021 e o início de 2022, havia nada menos que treze políticos de centro dispostos a tentar quebrar a polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Chamada de terceira via, a longa lista de nomes foi definhando, deixando pelo caminho gente grande como o governador paulista João Doria e o ex-ministro Sergio Moro, até chegar a cinco candidatos, que, somados, levaram pífios 8,2% dos votos válidos. Se é verdade que nove entre dez eleitores acabaram escolhendo, mesmo que a contragosto, um dos favoritos, também foi estridente a constatação de que um enorme contingente de 38 milhões de brasileiros (um quarto do total apto a votar) recusou-se a empenhar apoio a qualquer um dos dois: 5,7 milhões votaram em branco ou nulo, e 32,2 milhões nem foram às urnas. Esse imenso público continua por aí, sem se engajar com a esquerda ou a direita. Pesquisas Datafolha, Ipec e Quaest divulgadas em junho mostraram que é possível dividir o sentimento do eleitor com o governo Lula em três blocos com tamanhos parecidos: os que apoiam o petista, os que o rejeitam e aqueles que acham regular o seu mandato. A questão que intriga desde 2022 é a seguinte: o que é, afinal, esse segmento, que não é seduzido pelos extremos, mas não foi capturado pelas forças moderadas de centro? Um estudo inédito e exclusivo, feito pelo Instituto Locomotiva em parceria com a Agência Ideia, mostra que esse eleitor é complexo e vai exigir mais esforço do que se dispendeu até aqui para ser conquistado.
Uma das principais constatações é que esse eleitorado “nem-nem” está longe de ser um bloco homogêneo e tampouco pode ser colocado nas velhas caixinhas ideológicas de direita ou de esquerda. Ao mesmo tempo em que ele defende a vacina contra a Covid-19 e critica quem atuou contra ela (o que o coloca contra o bolsonarismo), uma folgada maioria acha que o aborto é crime (o que a deixa ao lado dos conservadores). Também é possível constatar a pluralidade ideológica ao ver que esse contingente apoia posições mais à esquerda, como maior intervenção do Estado na economia e controle rígido de armas, mas se divide em temas como descriminalização da maconha e identidade de gênero (veja quadros nesta reportagem). Uma outra conclusão é o alto nível de distanciamento desse eleitor do debate político. A grande maioria não tem opinião sobre o papel do STF, a presença de militares no governo, a segurança das urnas eletrônicas e a política tributária, todos temas que estão ou estiveram recentemente na agenda nacional. “O eleitor sente que as pautas de natureza ideológica são impostas pelos candidatos e perde o interesse”, avalia Renato Meirelles, diretor do Locomotiva.
O típico nem-nem se mostra mais mobilizado frente a questões concretas, por isso tende a opinar mais sobre armas e aborto do que sobre o papel das instituições na democracia. Alguns temas entram e saem do radar de interesses do eleitorado. A fome, por exemplo, voltou a ser um tema importante, algo que não ocorria desde 2002. Por outro lado, a corrupção, protagonista em 2018, sumiu na última eleição e nada indica que dará as caras na próxima. Em 2022, discussões sobre temas relacionados a costumes e a respeito do combate à Covid-19 provocaram faíscas, sendo que Lula e Bolsonaro monopolizaram desde o início esses debates. A tendência é que essa polarização persista, pois ainda não há no horizonte uma outra forte liderança nacional. Além da falta desse nome, há uma barreira natural formada por Lula e Bolsonaro. Mesmo que não sejam candidatos, é certo que serão os principais cabos eleitorais dentro de seus respectivos campos ideológicos. “O eleitor de centro espera um político ideal, que não existe e não vai existir enquanto Lula e Bolsonaro não forem exauridos”, avalia Murilo Hildalgo, presidente do Instituto Paraná Pesquisas. Essa concentração de votos em duas vertentes políticas lembra os Estados Unidos, dividido entre Democratas e Republicanos. Em 2020, Joe Biden e Donald Trump levaram 98,2% dos votos, algo muito próximo ao que ocorreu no Brasil, onde Lula e Bolsonaro tiveram 91,8%. Muitos entendem que o Brasil está se aproximando desse modelo.
Outra característica que vem se consolidando cada vez mais é que esses dois polos políticos precisam se aproximar do centro para levar vantagem em disputas que tendem a ser apertadas. Prova disso é que, para voltar ao Palácio do Planalto, Lula teve de fazer acenos firmes ao eleitor mais moderado, como nas aproximações com Geraldo Alckmin e Simone Tebet. Conforme mostra a pesquisa Locomotiva-Ideia, a grande maioria do eleitorado nem-nem (78%) não se identifica na escala esquerda-direita — 41% nunca tiveram posição política, 18% já tiveram, mas não têm mais, e 19% simplesmente não sabem se posicionar. “A falta de diferença clara entre os partidos torna a eleição muito mais personificada do que ideológica”, diz Márcia Cavallari, CEO do Ipec. Não por acaso, grande parte da derrota de Bolsonaro é atribuída ao radicalismo do capitão, com declarações estapafúrdias e políticas desastrosas, especialmente durante a pandemia. No caso do ex-presidente, confirmada sua inelegibilidade, é provável que o herdeiro do seu espólio seja alguém mais moderado, sem abandonar a direita. Destaca-se nesse bloco o governador paulista Tarcísio de Freitas (veja a reportagem na pág. 30), mas outros chefes de Executivo estaduais podem também ocupar esse espaço, como Romeu Zema (MG) e Ratinho Junior (PR), o que pode atrair o eleitor que não se identifica com radicalismos. “O perfil deve ser semelhante ao daqueles que se candidataram recentemente como terceira via”, avalia Glauco Peres, professor do Departamento de Ciência Política da USP. Uma certeza é que dificilmente aparecerá um outsider, uma vez que o sistema concentra o dinheiro dos fundos públicos em poucas legendas, o que dificulta que haja algum candidato que não seja do establishment partidário. “É pouco provável que alguém de fora da política tenha destaque, porque todos dependem desses recursos”, diz Cila Schulman, CEO do instituto Ideia.
Para muitos analistas e lideranças políticas, a eleição de 2022 foi atípica, porque envolveu pela primeira vez um presidente e um ex-presidente com capacidade de mobilizar grandes eleitorados antagônicos à esquerda e à direita, asfixiando o centro. O melhor desempenho foi o de Simone Tebet (MDB), que teve 4,2% dos votos. “Houve uma escassez de liderança e quem se apresentou para o eleitor não foi capaz de provocar aquele curto-circuito”, avalia Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo. Uma dificuldade adicional foi a antecipação da polarização, que começou a ser desenhada em abril de 2021, quando o STF devolveu os direitos políticos a Lula. As tentativas de criar alternativas surgiram tarde demais. “A Simone Tebet só se tornou conhecida pelo grande público a partir do horário eleitoral, que começou no fim de agosto”, lamenta Baleia Rossi, presidente do MDB. Apesar do fiasco de 2022 e da complexidade do eleitor que ainda não foi seduzido pelos extremos, as lideranças de centro acham que a próxima eleição pode ser diferente. “Precisa ter uma plataforma mais clara e defendê-la desde cedo”, diz Baleia, que cita a reforma tributária e o desenvolvimento sustentável, que seriam agendas oriundas desse espectro. “Sem proposta, não dá para querer ser a nova política”, diz o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (União Brasil), um dos que tentaram articular a terceira via no pleito de 2022. “O mundo está discutindo inteligência artificial e novas relações de trabalho, enquanto nós estamos falando ainda da luta de classes”, lamenta Roberto Freire, presidente do Cidadania.
Com 156 milhões de eleitores, o Brasil é a quarta maior democracia do planeta. Tem nada menos que trinta partidos registrados. Mais de 28 000 se lançaram candidatos em 2022. Mesmo assim, quase 40 milhões de votantes não se sentiram representados na última disputa e precisam ser entendidos. Eles podem viabilizar uma nova liderança política ou mostrarem-se decisivos na disputa entre as duas correntes do momento. Por isso, dada sua complexidade, o nem-nem surge para os políticos como a esfinge da antiga fábula grega: decifra-me, ou te devoro.