Discriminação de políticos facilita lavagem de dinheiro
Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
Especialistas ouvidos pelo GLOBO veem riscos caso venha a entrar em vigor o projeto que criminaliza discriminação contra políticos por instituições financeiras, aprovado na Câmara dos Deputados na última quarta-feira. Guilherme France, da Transparência Internacional, enfatiza que a votação do projeto ocorre na esteira de retrocessos no combate à corrupção. Ele aponta que o projeto pode retirar a autonomia para que instituições avaliem operações financeiras de nomes ligados a pessoas politicamente expostas, como familiares e sócios. O risco é o de a proposta, se aprovada no Senado, prevalecer sobre resoluções de órgãos de controle que estabelecem procedimentos a serem observados nesses casos.
— Haveria espaço para contestação em relação a casos que não estejam na lista. Isso teria que ser decidido pelo Judiciário. Familiares próximos, que podem ser utilizados como laranjas, foram incluídos na proteção contra discriminação, mas não estão na lista de pessoas politicamente expostas — pontua France.
A norma do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que atua na prevenção a lavagem de dinheiro e combate à corrupção, determina dedicação especial às operações envolvendo não só quem está nos cargos públicos listados, mas também seus familiares, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas de que participem. Embora apresente uma lista semelhante de quem deve ser considerado pessoa politicamente exposta, o projeto aprovado na Câmara não traz esse trecho específico, o que pode abrir margem para contestações sobre o monitoramento de eventuais laranjas.
Nos casos de maior risco, a regulação do Coaf permite, por exemplo, adotar diligências para estabelecer a origem dos recursos e conduzir “monitoramento reforçado e contínuo da relação de negócio”. O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) apresentou ontem um projeto de lei para que a regulação sobre as pessoas politicamente expostas volte a ser normatizada exclusivamente pelo Coaf.
Outro ponto citado pelo pesquisador da Transparência Internacional diz respeito à proibição de discriminação de pessoas investigadas ou rés em processos sem trânsito em julgado. Para France, haverá desincentivo à atuação de instituições diante do risco de lavagem de dinheiro, em meio às penas impostas no projeto:
— Mesmo que uma pessoa esteja respondendo como réu em processo de lavagem de dinheiro, o banco não vai poder negar acesso ao serviço financeiro. Isso diminui a capacidade das instituições financeiras em reduzir riscos de operações.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Eduardo Saad-Diniz também aponta que a lei, se eventualmente aprovada, será superior à resolução do Coaf, o que dará margem à judicialização. O pesquisador avalia que há dificuldade de interpretação a partir da redação que se deu ao tipo penal no projeto. Ele ressalta ainda que as instituições adotam práticas de governança e compliance, independente de uma eventual lei, e que ser pessoa exposta politicamente é apenas um indicativo de reforço de controles.
— Ninguém sofre restrições de direitos pelas suas condições pessoais, mas sim por eventualmente haver deixado de cumprir determinada diligência ou esclarecer sobre operações suspeitas. Pior ainda, é difícil interpretar o que significa a conduta “negar” (acesso a contas e crédito). Você negou ou só pediu diligências de integridade e foram requisitados esclarecimentos? — analisa.
À coluna de Malu Gaspar, no site do GLOBO, a especialista em medidas antilavagem de dinheiro Maíra Martini, da Transparência Internacional, afirmou que o projeto coíbe as entidades financeiras de fazerem um bom trabalho na análise de risco. Os bancos seguem normas do Banco Central e acordos internacionais contra a lavagem de dinheiro de que o Brasil é signatário. A legislação permite que essas instituições até recusem uma pessoa politicamente exposta como cliente, caso identifiquem um risco muito alto — como o dinheiro ter origem ilícita. Na avaliação de Maíra, a lei vai contra esse arcabouço legal previsto para combater a lavagem de dinheiro.
— A redação da lei coloca que o banco será obrigado a dar informações sobre o motivo da negativa ao atendimento do cliente, o que contraria uma das premissas da lei antilavagem. Ou seja, a instituição terá de alertar aquela pessoa de que há, por exemplo, um relatório de atividade suspeita sobre ela. Essa análise hoje não é pública — defende.
Deputados favoráveis ao projeto enfatizaram em discursos no plenário durante a votação a necessidade de rever restrições que afetam filhos e cônjuges de políticos. O deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) ressaltou que o Congresso não pode mais se curvar ao que chamou de “excessiva orientação dos órgãos de controle”.
— Hoje, ser parente até segundo grau de político enseja uma série de fatores que prejudicam a normalidade da vida do cidadão — acrescentou Cláudio Cajado (PP-BA).
O deputado Júlio Lopes (PP-RJ) usou sua fala para contar um suposto caso de “discriminação” contra o ex-deputado Carlos Marun (MDB-MS). Ao retornar ao Brasil após uma visita à Líbia, o ex-parlamentar não teria conseguido trocar US$ 50 por reais, em uma agência do Banco Safra no aeroporto, por ser uma pessoa politicamente exposta.