Livro diz que junho de 2013 criou Bolsonaro

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Foto: Carol Carquejeiro/Valor

Autora de um livro e um documentário sobre junho de 2013, a socióloga Angela Alonso diz que o contexto criado a partir daquelas manifestações foi o que abriu espaço para o triunfo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2018.

Em “Treze”, já nas livrarias, ela defende que as “zonas de conflito” que explicam os protestos que marcaram o governo Dilma Rousseff foram todos fomentados durante os dois primeiros mandatos do agora novamente presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Havia grupos demandando à esquerda, por expansão de políticas, mas também grupos demandando à direita”
Surpreendido, o governo da época não soube interpretar o fenômeno e errou ao tratar o movimento como se fosse exclusivo da esquerda, diz. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: A senhora começa o livro falando da perplexidade de todos com a eclosão das manifestações. Se dez anos atrás ninguém conseguiu prever aquilo, é razoável supor que algo parecido possa voltar a acontecer a qualquer momento?

Angela Alonso: Não. Eventos desse tipo são muito raros. Porque significam uma desestruturação geral das relações entre governo e sociedade. Grandes manifestações só ocorrem na hora em que há uma insatisfação que vem de várias direções e que se conjugam no mesmo contexto. E também quando o governo fica incapacitado de dialogar. Não são situações frequentes.

Valor: Os protestos de 2013 começaram em junho. Se havia uma desestruturação desse nível, por que isso não era perceptível em maio?

Alonso: Se você acompanhar no miudinho, verá que o governo estava sendo assoreado por críticas de diversas partes da sociedade de longo tempo. O que eu procurei fazer no livro é identificar quando isso começa como insatisfações organizadas. Começa no governo Lula [2003-2010].

Valor: Como foi isso?

Alonso: Surgiram três grandes zonas de conflito. Uma diz respeito à redistribuição, políticas que Lula fez de correção de desigualdade. Essas ações geraram tanto movimentos por mais distribuição como movimentos por menos, grupos contrários às políticas redistributivas. Foi ao longo dos governos Lula que ocorreu o crescimento de movimentos, sobretudo liberais, contrários a isso. Contra aumento de ingresso nas universidades, contra uma política de cotas, contra políticas de distribuição de renda.

Valor: E quais foram as outras duas zonas de conflito?

Alonso: A segunda diz respeito à moralidade, estoura no começo do governo Lula com o mensalão. Nesse momento já existem vários movimentos anticorrupção, tanto à esquerda como à direita. Grupos que fazem crítica ao governo do ponto de vista da moralidade pública. E uma outra parte, críticas à moralidade privada. Coisas que o governo Lula tenta fazer ou põe em pauta que dizem respeito à vida privada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a questão do aborto. Não por acaso, depois aparece a campanha contra o “kit gay”, epíteto criado pelo Bolsonaro. Foi a resposta da oposição. E aí começa uma reação forte de igrejas evangélicas e outras. Do lado da esquerda, começam a se formar movimentos a favor da legalização da maconha, Marcha da Maconha, grupos neofeministas.

Valor: E qual foi a terceira zona de conflito?

Alonso: A que diz respeito à violência. Há uma dificuldade do governo de lidar com a questão da segurança, um grande clamor das classes média e alta. E nesse campo tem ainda uma tentativa de Lula, malograda, de restaurar a Comissão da Verdade. Assim como Fernando Henrique, Lula propõe e recua, dada a reação. Então essas questões também entram no debate público sem serem equacionadas. Depois a Dilma instituiu. Foi um grande gatilho para movimentos mais autoritários. Ainda mais porque a Dilma é vista, por esse lado, como uma guerrilheira. Então ela é ilegítima para esse lado.

Valor: Em junho de 2013, Dilma já tinha dois anos e meio de mandato. Mas as explicações para aquilo estão no governo Lula, é isso?

Alonso: Sim. Quando Dilma assume, 2011, ela herda essas três zonas de conflito com movimentos pedindo por mais, de um lado, e outros pedindo por menos, do outro lado. Nos oito anos iniciais do Lula, esses movimentos tiveram tempo de se organizar.

Valor: Já em 2013 despontaram duas teses para explicar o episódio. Uma sustentava que aquilo estava ocorrendo porque Lula havia atendido demandas básicas, comida, emprego, renda, o sarrafo havia subido e as pessoas começaram a reclamar qualidade de vida…

Alonso: Essa tese ficou conhecida como a do pão com manteiga. Surgiu com uma fala do Lula. Ele diz que o povo já tinha conquistado o pão, agora está querendo a manteiga. E aí muitos intelectuais vinculados ao petismo expressaram isso.

Valor: A outra tese era a da crise do modelo de representação, crise combinada com a negação do sistema político de se modernizar. Qual das duas se mostrou mais correta?

Alonso: Foram mais de duas. Uma terceira foi a ideia de que havia uma nova geração que estava chegando com um projeto diferente do petista. Essas teses encaminham na direção de que havia ali um protesto de esquerda. A ideia da crise de representação apareceu por muitas vozes. Era uma ideia que vinha sendo aventada para explicar as manifestações europeias de 2011, que o sistema político tinha falido como o sistema representativo e que surgia uma demanda por mais participação política.

Valor: A senhora não concorda com essa interpretação?

Alonso: Eu acho que esse é um raciocínio… Na verdade, desde que o sistema representativo apareceu, século 19, ele sofre esse tipo de pressão. São duas coisas inventadas em simultâneo: o sistema representativo – o modelo de democracia que funciona por eleição de representantes, que são necessariamente poucos – e essa forma de demanda, o movimento social. Sempre foi assim: pessoas insatisfeitas com os eleitos vão à rua protestar.

Valor: E em relação à tese do pão com manteiga? Qual é a crítica?

Alonso: Aí o problema é o de imaginar que todo mundo que estava na rua em 2013 demandava por uma mesma direção. Não foi assim. Havia grupos demandando o governo à esquerda, por expansão das políticas, mas também grupos demandando à direita, por mudança radical ou por obstrução das políticas propostas no campo da moralidade e na redistribuição.

Valor: Então a novidade foi o fato de grupos com demandas opostas estarem juntos na rua, às vezes no mesmo espaço e ao mesmo tempo?

Alonso: Isso foi uma novidade. Bom, eu não gosto muito de falar de novidades porque se a gente estuda História sempre vê que nada é muito novo, né? (risos).

Valor: A senhora defende que o único elemento comum entre os diferentes grupos nas ruas em 2013 era a contestação das políticas do PT. Se é assim, por que havia veto às bandeiras de todos os partidos?

Alonso: É uma impressão errada. Fiz um levantamento dos eventos e identifiquei quais eram os organizadores. Os pequenos partidos de esquerda estavam lá. Também estavam outros partidos de centro e mesmo de direita. Em alguns eventos aconteceram essas situações, como queima de bandeira de partidos. Mas porque manifestantes de campos diferentes estavam na rua ao mesmo tempo no mesmo lugar. Quando os atos eram organizados por movimento no mesmo campo, as bandeiras de partidos estavam presentes.

Valor: Que balanço a senhora faz do desempenho do governo federal durante as manifestações de 2013?

Alonso: Teve uma grande dificuldade de interpretação. Isso dá para ver nas respostas oferecidas. O governo se relacionou com o caso como se fosse um fenômeno municipal, como se aquilo não dissesse respeito ao governo federal. Essa foi uma interpretação bastante disseminada.

Valor: E os outros erros? Entre as respostas imediatas, sacaram até a ideia de uma nova Constituinte.

Alonso: Sim. Outro erro foi formular toda a resposta como se o protesto fosse todo à esquerda. Isso fica claro no pronunciamento da Dilma. As pessoas e os movimentos que o governo decide chamar para negociação são só os de esquerda: o MPL [Movimento Passe Livre] e depois os movimentos estudantis. Então tem uma parte grande e importante da rua que não foi vista pelas autoridades como interlocutores legítimos. E quem também estava na rua? A Carla Zambelli [hoje deputada bolsonarista pelo PL-SP], o Marcello Reis [extremista de direita que chegou a ter mais de 2 milhões de seguidores no Facebook] e outros. Eram vários movimentos à direita do governo com uma agenda de moralidade pública, moralidade privada, antiaborto, anticasamento entre pessoas no mesmo sexo, contra a política de drogas, por mais polícia, defensores do regime militar, contra a instalação da Comissão Nacional da Verdade.

Valor: Da pauta eclética das ruas de 2013, o que foi conquistado? O passe não é livre. Saúde e educação não melhoraram. Ninguém arrisca dizer que a corrupção caiu…

Alonso: Essa agenda que você menciona representa algo como um terço da rua. Essas aí eram as demandas redistributivas da esquerda. Essa parte não foi atendida naquele momento. Mas outra parte grande das demandas foi atendida depois: a que dizia respeito ao pedido de menos Estado, liberdade de posse de armas, menos impostos, diminuição dos direitos trabalhistas. Porque tinha também vários movimentos liberais ali nas ruas.

Valor: Então seria correto dizer que só as demandas de viés conservador ou liberal prosperaram?

Alonso: Também não é assim. Nunca nenhum ator político consegue implementar os seus projetos completamente. É um jogo com muitos jogadores. O que resulta é um cruzamento de diferentes ações. O que acabou acontecendo é que essa agenda anticorrupção prestou um desseserviço, que foi desprestigiar os políticos coletivamente.

Valor: Fomentou a antipolítica?

Alonso: Tem um resultado no longo prazo, que é a ideia de que quem deveria representar os cidadãos não deveriam ser os partidos e os políticos experimentados, mas novos atores. Não é por acaso o partido Novo, que é esse que agora votou em bloco contra a igualdade salarial entre homens e mulheres, era o que estava coletando assinaturas [para sua criação] em junho de 2013. A ideia do “nós somos diferentes”, “não somos políticos” gerou a celebração de figuras como o Sergio Moro. E abriu espaço para lideranças como Bolsonaro, que embora estivesse no Parlamento há décadas, político profissional, se apresentou como antiestablishment. Tem um contexto que acabou levando a Bolsonaro.

Valor: Quais são as outras associações entre 2013 e Bolsonaro?

Alonso: Ele já estava associado ao movimento pró-armas. Ele é o único deputado que vota contra a PEC das domésticas. Ele se aproxima dos movimentos evangélicos por causa daquilo que ele chama de “kit gay”. Então ele já estava enfronhando em vários movimentos à direita.

Valor: O governo Lula atual carrega algo de 2013?

Alonso: Olhando agora, eu acho que não se aprendeu muito, não. As políticas que o governo tenta fazer agora são parecidas com as que ele tentou fazer antes. E as respostas já foram dadas. A sociedade brasileira tem um contingente muito grande de cidadãos da elite que não estão dispostos a mudar parte importante do funcionamento da vida social, das hierarquias sociais.

Valor: Mas não deveria fazer? Lula foi eleito com esse programa.

Alonso: Ué. A política é a arte de achar como fazer.

Valor Econômico